Raquel Naveira
Quem já não sonhou um dia em ser arqueólogo? Em estudar as culturas e modos de vida das sociedades humanas do passado? Em encontrar objetos de arte fantásticos, estruturas arquitetônicas, tesouros e moedas? Ir reconstruindo como num filme a vida dos povos antigos com seus comportamentos e aspectos psicológicos?
Por falar em cinema, na saga de Indiana Jones, o herói, interpretado por Harrison Ford (1942...), é um professor de arqueologia com gosto por aventuras, atento a lendas e histórias contadas pelo povo, pois é dessa fonte de oralidade que se iniciam e se desenvolvem todos os estudos e descobertas. Ele sai em busca de arcas perdidas, caveiras de cristal e taças místicas. Derrota soviéticos e nazistas, explora lugares incríveis, misturando pitadas de realidade com ficção. Eletrizante.
Imagino aqueles que escavaram na costa da Turquia os vestígios de Troia, a poderosa cidade-estado, ponto estratégico onde aconteceu a guerra entre gregos e troianos, descrita por Homero (928 a. C- 898 a. C) no poema épico Ilíada. Acharam as ruínas de nove cidades superpostas, construídas em sucessão. A guerra entre os séculos XII e XI a. C. provavelmente teve como palco a sétima cidade. Os gregos venceram, após anos de cerco à cidade, graças a um estratagema, um dos planos mais famosos da História: o Cavalo de Troia, com a barriga recheada de soldados gregos com suas lanças e escudos, dado de presente aos troianos. O destino do mundo foi decidido ali, nas muralhas de Troia. Quanto encantamento diante da batalha travada por homens e deuses.
A emoção experimentada pelo arqueólogo inglês Howard Carter, em 1922, ao entrar na tumba intacta do faraó egípcio Tutancâmon (1341 a. C- 1323 a.C), deve ter sido incrível. Por instantes, o tempo como fator da vida humana, perdeu o sentido. A eternidade pairou no ar. O mesmo ar partilhado por aqueles que puseram a múmia para descansar naquela sala, que se abriu depois da subida de alguns degraus escondidos pelas areias do Vale dos Reis. Tutancâmon foi genro da fabulosa rainha Nefertiti, um monarca quase sem importância, que tinha dez anos quando o seu reinado começou, casou-se com uma menina de doze anos e morreu enfermo aos dezenove anos. Sabe-se que restaurou o culto ao deus Amom, transferiu a capital para Tebas, modelou imagens para festivais em honra do touro Ápis, restaurou relações diplomáticas após confrontos contra núbios e asiáticos. Sua coluna vertebral com escoliose e o pé necrosado e torto justificavam as inúmeras bengalas encontradas na tumba.
Posso ver a cena: Carter na câmara, caminhando pelo meio de estranhos animais, estátuas de ouro cintilando por toda parte até chegar ao sarcófago dourado. Foram anos de escavações intermináveis, trincheiras, piquetes, montanhas de destroços e entulhos. Mas agora, todo esforço valera a pena.
Carter catalogou mais de cinco mil peças: máscaras mortuárias, tronos com grinaldas e patas de leão, trombetas, vasos de alabastro, cálices cobertos de pasta vítrea, armaduras, baús, cofres com vísceras, joias e amuletos, tabuleiros de jogos de marfim, o deus-chacal Anúbis e a deusa em forma de serpente alada, barcos com flores de lótus, cestos, leques de plumas, roupas de linho, sandálias com desenhos, facas cerimoniais, dois carros de guerra. Tudo hoje se encontra no Museu do Cairo.
Surgiu então a crença da “maldição do faraó”. Afirma-se que muitos dos envolvidos na descoberta da múmia tiveram morte súbita. Que qualquer pessoa que violasse a múmia de um faraó cairia em má sorte, seria aniquilado em circunstâncias trágicas e misteriosas. Uma série de coincidências macabras acabaram criando esse mito. Depois de alguns meses, vários dos participantes das escavações e da abertura dos sarcófagos estavam mortos, entre eles, o lorde inglês Carnavom, financiador do grupo. Vieram explicações científicas: o local esteve fechado por três milênios e houve contaminação por fungos e bactérias. Dizem também que alguns tinham pesadelos reais com a múmia que perturbaram. Tudo muito assustador.
Na literatura, veio-me à mente a figura da personagem Ezequiel, o filho de Capitu e Bentinho (ou talvez do traidor adúltero, Escobar) no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis (1839-1908). Bentinho desconfiava que o filho era um bastardo. Tinha o modo de andar, comer e sorrir do amigo morto. O ciúme e a dúvida o corroíam. Apesar de tudo, fez o papel de pai. Vendo que o rapaz amava a arqueologia, financiou-lhe uma viagem à Grécia, Egito e Palestina. Ezequiel morre de febre tifoide e é enterrado em Jerusalém com as palavras de antigo salmo: “Tu eras perfeito nos teus caminhos”. Talvez o túmulo ficasse próximo da Cidade Velha, de onde hoje se veem bandeiras hasteadas. Talvez Ezequiel tivesse andado pelo granito vermelho sobre o qual há um deus de pedra abandonado. Talvez tivesse entrado em sepulcros e templos ou na pirâmide de um faraó. O certo é que foi enjeitado pelo pai casmurro.
Longe da empolgação da arqueologia, resta-me escavar pedaços de mim, da minha alma, do meu âmago, do meu bojo recheado de pensamentos e líquor cerebral. Faço-o porque estou viva e porque creio que meu espírito seja eterno. Arranco com força sinais, marcas, duros aprendizados a ferro e brasa. A arte da escrita, como antigos hieróglifos, tatuou-me inteira. Dores do mundo me dilaceram, mas não quero alimentar chacais e abutres. Que passem, simplesmente, sem alarde. Deixem-me nessa investigação profunda. Um dia, chegarei ao relicário do meu coração, ao meu estado original.