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*José Renato Nalini

Estamos acostumados a enxergar santos como seres sobrenaturais, com ligação íntima e permanente com o Criador, inefáveis criaturas distanciadas de nós, mortais e pecadores.Nalini 7 5e559

Não é verdade. O século 20 produziu santos e o século 21 continua a produzi-los, nada obstante o mar de imundície que parece nos rodear.

Com a morte de Antonio Carlos Malheiros (2.2.1951-17.3.2021), o mundo perde um de seus melhores e os céus ganham um santo. Verdadeiramente santo foi esse idealista, fervoroso cultor de uma justiça humana, nem sempre coincidente com a sofisticação erigida em torno ao sistema encarregado de solucionar os conflitos neste planeta.

Malheiros tinha muito de poesia em sua vida. Também, foi filho de um magistrado, Lauro Malheiros, que era poeta. Formou-se em direito na USP, advogou de 1973 a 1994, foi guindado ao Primeiro Tribunal de Alçada Civil pelo Quinto Constitucional e chegou ao Tribunal de Justiça, onde era o segundo desembargador mais antigo a ocupar o Órgão Especial.

Convivi com ele durante décadas. Já o conhecia antes de ingressar na Magistratura, pois seu pai era grande amigo de meu inesquecível tutor intelectual, o poeta Paulo Bomfim.

Desde então, estabeleceu-se uma amizade de infância. Aliás, era Paulo Bomfim quem dizia que “amigos não se conhecem; se reconhecem”. Era a identificação de alguns princípios, alguns ideais, aquela intuição certeira de se defrontar com alma gêmea, com pessoa de bem e do bem.

Auxiliou-me como o mais querido dentre os Desembargadores de São Paulo, para tratar com as entidades de classe dos funcionários do Tribunal de Justiça, permitindo que a gestão presidencial de 2014-2015 fosse tranquila e respeitosa.

Era um ponto de apoio nas sessões do Órgão Especial, onde vinte e cinco magistrados, experientes e quase que em final de carreira, esposam pontos de vista nem sempre convergentes. Ele sempre foi solícito a defender as causas que levassem o Tribunal a ser cada vez mais humano, a realizar um justo concreto o quão perfectível fosse possível.

Pródigo em generosidade, a todos atendia com autêntica satisfação. Fazia trabalho com os moradores de rua. Não era filantropia, mas a concretização do dogma fundamental do cristianismo: o “amai-vos uns aos outros”. Interessava-se pela desventura de cada ser humano jogado à sarjeta e cuidava de oferecer seu ombro verdadeiramente amigo, para a recuperação que se mostrou possível em inúmeros casos.

Tinha legítimo orgulho ao verificar que as criaturas invisíveis para a maioria, conseguiam reerguer-se e encetar rumo considerado normal para a sociedade.

Não satisfeito, vestia-se de palhaço e ia contar estórias para crianças com câncer e as internadas no Emílio Ribas, área infantil dos contaminados. Era um exercício semanal que ele dizia servir para recompor-se e para consolidar a conclusão de que era alguém imensamente feliz.

Malheiros viveu para os outros. Quem não encontrasse ouvidos prontos a ouvir misérias, pois nossa era é daquelas em que todos querem falar, ninguém quer ouvir, sabia que ele estaria atento. Interessado mesmo. Dava andamento aos pleitos. Colocava-se à disposição de todos os portadores de problemas.

Quantas vezes optou por permanecer sozinho nos julgamentos emblemáticos, em que o ordenamento estava de um lado e a justiça de outro. Muitos não conseguiam se afastar do formal, do procedimentalismo, da letra fria da lei – mea culpa – ele arrostava incompreensão e só obedecia à sua reta e pura consciência.

Era adorado pelos alunos, dos quais era mais amigo do que mestre. Aberto a todos, passava a ser orientador na carreira, acompanhava as mudanças e se alegrava com eles quando era o caso. Mas era efetivamente solidário, quando a desgraça os visitava.

Foi alguém que nos ensinou o que é virtude. Mas isso existe?

Por incrível que parecer possa, nesta era de tanta decepção em todos os ambientes, com o culto à matéria, ao egoísmo, ao narcisismo, ao consumismo, há pessoas virtuosas. Antonio Carlos Malheiros foi uma delas. Permanecerá como exemplo.

Jundiaí também mereceu o seu carinho. Aqui passou momentos inesquecíveis. Faz parte de nossa história pessoal e da consciência coletiva da cidade.

*José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2021-2022, e ocupa a Cadeira nº 8 da Academia Cristã de Letras.