Raquel Naveira
Há em mim uma veia lusitana que faz com que me sinta uma criatura vinda do mar. Talvez porque tudo sai do mar e a ele retorne. Talvez porque o mar esteja entre mim e Deus neste século. Talvez porque
atravesso o mar da vida em um navio frágil.
Sou fascinada pelas viagens de descoberta de Vasco da Gama, Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães. Os primeiros exploradores que enfrentaram os terrores do oceano ensanguentado, as tempestades, o fogo dos raios e trovões, as fúrias do vento, as ondas agitadas. A ânsia de encontrar novas terras, riquezas, oportunidades; novos problemas e maneiras de pensar. O navegador não sabia para onde ia, nem tinha esperança de voltar. O importante era desafiar o desconhecido, com iniciativa e coragem. Densos nevoeiros infecciosos escondiam recifes e ilhas. Shakespeare comparou as brumas a uma “suja e contagiosa escuridão no ar.”
Monstros marinhos eram para os exploradores uma realidade concreta. Estavam nos desenhos dos mapas; nos bestiários medievais, um tipo de literatura comum entre os monges, que descrevia as bestas fantásticas do mundo animal, que povoavam a imaginação dos marinheiros. Esses monstros de grandes bocas, dragões com dentes e caudas, rondavam ao largo e se alimentavam dos mastros do navio, esmigalhavam a galera, os canhões, os barris de vinho, os botes a remo. Formavam-se depois redemoinhos. Baleias e tripulantes afogavam-se aos gritos.
A poetisa argentina, Alfonsina Storni (1892-1938), emigrou com a família da Suíça para Santa Fé, onde modestamente trabalhou como costureira, operária, atriz e professora. Quando soube que era portadora de um câncer de mama, suicidou-se, lançando-se ao mar de um penhasco. Tinha 46 anos. A tragédia foi registrada na canção “Alfonsina Y El Mar”, gravada na voz tonitruante de Mercedes Sosa (1935-2009). Alfonsina, com sua solidão, foi buscar poemas novos nas espumas de sal. Angústias e dores a calaram. Ela se recostou numa rocha forrada de conchas. Cinco sereias a levaram por caminhos de algas e de corais. Cavalos-marinhos fizeram uma ronda a seu lado com outros habitantes da água como enguias, lagostas e golfinhos, esses delfins que conhecem uma linguagem cifrada de códigos ancestrais. Alfonsina vestiu-se de mar...
Também eu mergulhei em águas abissais profundas do oceano do meu inconsciente. Aprendi a sobreviver em condições difíceis, extremas, com pouco oxigênio, muita pressão, nua e com frio. Meu corpo se tornou elástico. Meu esqueleto ficou leve, quebrado e minha carne gelatinosa. Coloquei uma haste de luz na ponta da minha cabeça como um espinho. Meus olhos se tornaram enormes como lâmpadas. Na treva verde, vejo esponjas, peixes de vidro, ogros com longos caninos, plânctons, caranguejos gigantes, pentes de águas-vivas, filamentos de seres clonados e chumbados em colônias luminescentes.
Requer esforço voltar à tona, à superfície do planeta. Sair dessa viagem, dessa vertigem. Começo devagar a seguir os bandos de pássaros-contramestres no céu. Observo boiarem cascas de palmeiras, galhos de árvore. Saio aos poucos daquele pântano inavegável e cheio de monstros. Já não estou à mercê dos elementos e dos perigos do mar, como o apóstolo Paulo, que sofreu naufrágios durante dias e noites no abismo. Os perigos foram afastados por um clarão de eletricidade que me salvou. Posso discernir entre instinto e intelecto. Nado no nada. Contra a corrente. Sou criatura do mar.