Raquel Naveira -
Acompanhamos com orgulho a notícia de que Marcelo Gleiser, astrônomo brasileiro, pesquisador nos EUA, recebeu o Prêmio Templeton, o “Nobel da Espiritualidade”. Há mesmo misticismo nos títulos de seus livros como A Dança do Universo, Poeira das Estrelas, Mundos Invisíveis, O Fim da Terra e do Céu. Como cientista, declarou que o conhecimento no mundo sempre será limitado, que só se vê parte da realidade e que é necessária a conexão com o mistério. Seu trabalho tem foco social, ético, de salvar nosso planeta e nossa espécie.
Por algum tempo, na infância, tive vontade de ser astrônoma, de estudar a origem e os movimentos dos corpos celestes; observar com um telescópio os planetas, as nebulosas, os aglomerados de astros e galáxias. Tudo começou quando fui levada ao Observatório Astronômico de São Paulo, o Planetário do Ibirapuera, que parecia um disco-voador pousado entre as árvores do parque. A cúpula brilhante prometia uma viagem ao espaço sideral. Na sala escura era grande a sensação de imersão no cosmos. Um projetor de última geração jogava imagens na abóbada de chapas de alumínio: os trópicos, o zodíaco, as navegações por mares celestes, os astros representados em cores reais, a simulação de nuvens e tempestades. Mas o mais belo era o Sol atravessando como uma carruagem de fogo, desde o seu raiar até o momento de se pôr. Fui então matriculada na escola do Observatório que ministrava aulas de astronomia para crianças. Percebi logo que essa ciência tão antiga envolvia química, cálculos matemáticos na base de milhões de anos-luz e desanimei. Mas aquele fascínio pelo céu ficou marcado e cresceu dentro de mim.
Como consolo, viajei com a boneca Emília, do Sítio do Picapau Amarelo de Monteiro Lobato, pelo céu, na cauda de um cometa, numa aventura inimaginável. Fui apresentada às estrelas, andei pela superfície branca e porosa da Lua, escorreguei pela Via-Láctea e pelos anéis de Saturno, causando pânico e aflição aos astrônomos aqui da Terra que não sabiam o que estava acontecendo.
Depois, recebi da escritora carioca Roseana Murray um livro de capa azul, cheio de estrelinhas brancas, chamado Lições de Astronomia. Na apresentação, ela pede desculpas aos astrônomos, diz não entender nada do assunto, que só consegue distinguir o Cruzeiro do Sul e as Três Marias, mas que, olhando para o céu, sente pulsar em si mesma infinitos enigmas. Teve a ideia de relacionar as coisas celestes com seus sentimentos como a melancolia do crepúsculo, naquela hora “em que o dia não é mais dia/ em que a noite/ não é noite ainda,/ tudo é magia,/ e o céu parece veludo furta-cor/ escorrendo das mãos vazias.”
O meu delírio de vigia noturna, transformou-se no sonho de ir mais além, de ser viajante espacial, marinheira navegante, capaz de furar a órbita da atmosfera num foguete pilotado por mim com mãos seguras, escudo térmico e capacete de oxigênio. Como a famosa Peggy Whistson, astronauta americana, eu passaria 665 dias fora do planeta. De um lado da nave, a Terra toda azul, maravilhosa, surpreendente. Do outro, o negrume espesso do firmamento. Registraria minha vida cotidiana na ausência de gravidade, dando cambalhotas, brincando com a forma dos líquidos nas superfícies, leve como uma pluma, serpente descamando peles. O meu conceito de lar mudaria, a minha casa seria apenas um ponto minúsculo, uma fazenda distante, um útero de mãe esquecido, uma bolha ambulante. Que travessia épica eu faria pelo espaço! Mais importante que a de Ulisses de volta à ilha de Ítaca, seu reino perdido.
Claro que me perguntaria o tempo todo se haveria mais vida inteligente no universo. Afinal, na minha adolescência, o livro Eram os deuses astronautas?, do suíço Erich Von Däniken era sucesso absoluto. Sua teoria estapafúrdia afirmava que os deuses de todas as mitologias eram seres alienígenas que trouxeram técnicas e conhecimentos avançados para os humanos primitivos, oriundos dos primatas. Havia ilustrações das colossais pirâmides do Egisto, de enormes estátuas e desenhos dos deuses gregos. Sem compromisso com a arqueologia, sem compaixão pelo sangue e pela força bruta dos homens, a leitura era puro entretenimento. E eu ia misturando astronomia e mitologia na minha cabeça cheia de indagações metafísicas sobre tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será. Até que um dia encontrei o Cristo, figura antropomórfica e divina, cintilando no céu e nas minhas próprias e inexploradas entranhas.
Meu desejo de ser astrônoma era apenas a revelação da minha essência, mas creio, sinceramente, que Marcelo Gleiser seja capaz de ensinar Física para Poetas.