Raquel Naveira
Que ar de fazenda. É por isso que minha cidade, Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, foi eleita a mais arborizada do país. Uma terra toda feita de árvores e de lembranças.
Os ipês com suas copas abertas e arredondadas revestem-se de cores. As flores caem formando tapetes roxos, dramáticos. Imagino sempre um cervo de alta galhada pastando pétalas, ruminando com olhos doces.
Os flamboyants, que dão nome a um bairro inteiro, flamejam em chamas de um vermelho-alaranjado. Novo Pentecostes em línguas de fogo sobre o verde rendado que se move ao vento. Todas as folhas terão seu momento de ver o sol, de beber crepúsculo, de sorver a luz.
E esse corredor de flores na avenida que mais parece um cartão-postal, um quadro impressionista, um sonho cor-de-rosa? Avenida que leva o nome de Ricardo Brandão, o advogado e jornalista que lutou pelos direitos humanos e que ficaria lisonjeado com essa homenagem das melancólicas quaresmeiras.
Da mesma família das quaresmeiras são as paineiras. Prefiro as brancas, que soltam flocos de algodão, painas que enchem os travesseiros como amor de mãe, leite de lívida nata tirado no curral, asas de anjos, maná caído do céu.
Por toda parte espalham-se figueiras, a cada esquina, a cada quintal. Figueiras que crescem enérgicas, lenhosas, rebeldes e retorcidas, prenhes de látex, de larvas e vespas. Abrigam aves, símios e morcegos presos aos pequenos figos como se fossem seios. O figo é uma fruta sagrada, que crescia na Terra Prometida juntamente com o trigo, a cevada, a uva, a romã, a oliva e a tâmara. A figueira é citada em muitos textos bíblicos: Adão e Eva, percebendo-se nus, coseram folhas de figueiras e fizeram cintas; Jesus amaldiçoou a figueira improdutiva, fazendo-a secar e seu sentido profético e profundo anuncia o fim do mundo. Oriundas de minúsculas sementes, essas figueiras orientais estenderam suas ramadas e folhas de cinco pontas na direção deste oeste brasileiro.
Nas minhas mais antigas recordações, não podem faltar as mangueiras com seus corações amarelos, como essa junto ao grande e luminoso shopping; as jaqueiras com suas frutas enormes, pesadas, ovários de flores, bagos grudentos na casca que parece um tatu; os ingás com suas longas vagens e caroços de polpa branca e adocicada. Tive uma infância de árvores carregadas, de um mundo tão rico que apodrecia ao meu redor.
Lembrei-me de Alberto Caeiro, o heterônimo de Fernando Pessoa ligado à natureza e às sensações, quando ele se pergunta que metafísica têm as árvores. Talvez a de serem verdes e terem ramos, de darem frutos espontâneos a cada estação. A melhor metafísica é a das árvores que não pensam, que não sabem para que vivem, nem sabem que não sabem. Apenas cumprem seu destino de árvores. A beleza falando por si mesma, quando as palavras falham. Essência e potência em grau máximo. Árvores solitárias, perfeitas e puras.
Concentro-me no verde das árvores. Broches fincados no peito de cimento da cidade, entre prédios e luzes. Parou de chover. Ficou lavado o ar de fazenda da minha cidade.