Adélia Prado (1935) exerceu uma forte influência sobre mim, sobre meu espírito, meu fazer poético. Logo que ela surgiu no cenário literário, vinda lá de Divinópolis, interior de Minas Gerais, para o mundo, fiquei fascinada por sua poesia carregada de religiosidade, fogo e erotismo; de mistério da criação; de epifania revelada nas coisas mais simples.
Acompanhava sôfrega todos os seus livros: Bagagem, O Coração Disparado, Terra de Santa Cruz... E também as entrevistas em jornais e revistas. Fui uma vez a São Paulo só para vê-la declamar seus poemas para um público fervoroso e atento. Sua figura de cabelos brancos, vestida de negro, era eletrizante.
Que alegria, que sonho realizado quando ela esteve em minha casa e sentou-se no sofá da minha sala. Ali ela me concedeu uma longa entrevista gravada pela TV UCDB, Universidade Católica Dom Bosco, onde eu era professora de Literatura Brasileira.
Depois dos holofotes apagados, ficamos conversando. Ela acabara de lançar o livro O Pelicano. Falei a ela que esse título me lembrava o poema “Albatroz”, de Baudelaire. O albatroz, pássaro marinho, soberano dos céus, desastrado e desengonçado na terra, o corpo pequenino mal equilibrando as asas enormes. Fui até a estante e peguei o livro Flores das Flores do Mal, tradução de Guilherme de Almeida dos poemas que ele mais gostava de Baudelaire e lemos juntas o poema: os marinheiros pegaram o albatroz-viajeiro que seguia o navio, levaram-no até as pranchas rasas do convés e ele, senhor do azul, todo sem jeito e envergonhado, arrastava as alvas asas como remos ao seu lado. A bela ave tornou-se cômica e feia. Um marinheiro zombador colocou um cachimbo em seu bico, o outro começou a imitá-lo mancando, todo coxo. O poeta, conclui Baudelaire, é semelhante a esse príncipe da altura, exilado em meio à turba, à corja impura. Suas asas de gigante o impedem de andar.
Adélia balançou a cabeça:
- Lindo. Albatroz é uma palavra derivada do árabe “Al-gattãs”, ou “alcatraz”, um pelicano, um mergulhador. O meu poema “Pelicano” fala da aparição de um navio. Um dia vi um navio de perto. Eu, mineira, distante do mar. Olhei o navio por muito tempo. Eu amava o navio. Ah, que coisa é um navio! Eu dizia: _ olha, olha o navio na massa das águas. É, eu vi o navio uma noite dessas, antes de me deitar, vi como um sentimento. Eu estava poetizada.
- Adélia, parece que estou vendo o mar, o navio, o pelicano branco com uma mancha de sangue no peito. O pelicano se imola, se sacrifica, dá o próprio sangue aos filhotes famintos, sabia?
Ela consentiu com um aceno de cabeça, os olhos vagos e cinzentos.
Nisso minhas mãos esticaram em direção a uma mesinha de canto onde estava pousado um pequeno albatroz de louça branca.
- Veja, comprei em Ponta Porã. Quando o vi na loja, lembrei-me imediatamente de Baudelaire e o trouxe como símbolo da dor e do prazer de me sentir poeta. É seu. Aceite. Um presente meu para você.
Ela segurou rapidamente o albatroz de louça e sorriu:
- Dê-me logo, antes que você se arrependa, e o levou ao coração.
Já havia escurecido àquela hora e eu tive a sensação de que um navio atracou devagarinho no meu jardim.
(Adélia Prado recebeu por sua obra os dois grandes prêmios literários do ano: o Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras e o Camões, do Ministério da Cultura de Portugal)