Estou com um molho de chaves nas mãos. Não consigo abrir a porta. Tantos bens eu possuo: esta é a do carro, esta do cofre, esta do escritório. Uma é de prata, outra é de ouro. Uma tem um diamante cravejado; outra, quatro dentes. Onde a chave de que preciso diante deste impedimento? Há um enigma a resolver, um mistério a penetrar, uma ação a empreender, algo a descobrir. Continuo aqui, parada, com pressa, revirando as chaves.
Lembrei-me da passagem em que Jesus deu as chaves do Reino dos Céus ao apóstolo Pedro. Autoridade para ligar e desligar na Terra o que seria ligado e desligado nos céus. Na verdade, as decisões devem ser tomadas primeiro no mundo espiritual, no campo das ideias, para depois se materializarem neste plano. Seria arrogância pensar o contrário. Na impermanência em que vivemos, as coisas líquidas, cheias de água e sangue, se coagulam e, de repente, se dissolvem pelos vãos de nossos dedos. Quero muito a chave para entrar no Reino, mas agora, só necessito da chave que abra esta porta. É urgente.
Na busca desesperada, ouvi a voz de Drummond declamando o seu poema “Procura da Poesia”. O poeta nos aconselha a não fazer versos sobre acontecimentos, aniversários, incidentes pessoais, cantos à cidade ou à infância. Aconselha-nos a aceitar o poema, a chegar mais perto das palavras, a observar suas mil faces secretas sob a face neutra e respondermos à pergunta: “_ Trouxeste a chave?” Ah! Poeta, eu trouxe a chave que guarda esta porta, que governa os meus caminhos, mas onde estará ela no meio desse turbilhão de oráculos e palavras?
Que emoção terão sentido os reis Isabel de Castela e Fernando de Aragão quando Granada capitulou. O próprio rei mouro Boabdil lhes entregou a chave da cidade, diante de mais de cem mil pessoas: espectadores cristãos, judeus, muçulmanos, castelhanos, estrangeiros. Andaluzia se acendeu em festa. A rendição foi celebrada durante vários dias. Era o fim de uma década de guerra, de séculos de domínio árabe, nos territórios da Espanha. Era o começo de sombras: a Inquisição, os impostos, revoltas, represálias, expulsões e o descortinar de um novo mundo na América distante. Com a chave, Fernando destrancou as muralhas e alcançou a torre mais alta e vermelha do palácio de Alhambra. E eu só queria uma chave que abrisse esta porta. De que adianta carregar comigo essas outras chaves, sem nunca entrar em meu próprio espaço? Esforço-me, foco na direção, determino continuamente que o ferrolho caia e ... nada.
Sinto o mesmo pavor gélido da camponesa Leonora, que se casou forçada com o Barba Azul, do conto de Charles Perrault. O Barba Azul era dono de uma fortuna, mas tinha uma tristeza: sua barba de tom azulado lhe dava um aspecto grotesco. Já se casara muitas vezes e ninguém sabia o que fora feito das antigas esposas. Um dia, ele disse que precisava viajar e deu a ela uma grande argola cheia de chaves. Descreveu as portas de cada uma delas. Mostrou então uma chave pequenina, que abriria um gabinete no térreo. Proibiu-a de entrar lá. Ficaria irado, se ela tentasse entrar naquele quartinho. Ela, então, curiosa, tremendo, destrancou a porta. Viu o assoalho encharcado de sangue, cadáveres de mulheres mortas penduradas por ganchos. Um espetáculo macabro. A chave mágica caiu no chão e ficou manchada de sangue. Esfregou, esfregou e o sangue não saía. Quando o Barba Azul voltou, ela inutilmente pediu perdão. No momento em que ele a agarrou pelos cabelos e ia passar o cutelo em seu pescoço, os irmãos de Leonora, vestidos de mosqueteiros, chegaram e atravessaram o corpo do Barba Azul com espadas. Todos passaram a viver livres e ricos.
Que história trágica, sinistra e atual! O Barba Azul, segundo a analista junguiana Clarissa Pinkola Estés, no seu livro Mulheres que Correm com os Lobos, representa um arquétipo presente na psique de todo ser humano: o predador, aquele que irrompe no meio dos planos da alma, que isola a mulher de sua natureza intuitiva, que mostra a crueldade sob uma máscara, que entorpece e fragiliza o outro. A chave é o símbolo que abre a porta de um quarto de horrores. Examino o meu molho de chaves: não há nenhuma com marcas de sangue. Todas brilham como moedas de sol e de lua. Pesam como chumbo.
Vou descansar um pouco do frenesi dessa busca pela chave. Ficar bem no silêncio e na solidão. Recuso-me a olhar para as tiranas circunstâncias que me rodeiam. Quero vida com qualidade e poder. Oportunidade de desfrutar do que Deus tem para mim. Respiro fundo. É a chave! Pronto. A porta, finalmente, se abriu.