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Helio Begliomini - “O tempo é a dimensão da mudança. Sem percepção da mudança, não há e não pode haver percepção do tempo. E as diferentes atitudes para com o tempo são corolários de diferentes atitudes para com a mudança.” Walter Kaufmann (1921-1980), filósofo alemão.

Reflexões sobre os conceitos de vida e de tempo tem-me fascinado há décadas.

É muito comum ouvirmos e dizermos que o tempo é curto... que o tempo passa rápido... que não se pode perder tempo na vida... que se deve aproveitar bem o tempo... que o tempo é implacável... que o tempo tudo perdoa... me dá um tempo!... quanto tempo ainda tenho?... dentre tantas outras frases similares.

Mas, quem será esse agente todo-poderoso, paradoxalmente virtual e onipresente, que denominamos tempo? Uma coisa é certa. Ele, assim como outros conceitos e conhecimentos, são só perceptíveis pelo homo sapiens, único animal que possui diferenciada massa cinzenta e capacidade reflexiva dela decorrente, que lhe permitem intuir conceitos concretos e abstratos sobre si, sobre outrem, sobre a natureza, sobre o planeta e sobre o universo. Por vezes tenho a sensação (a certeza!) de que o tempo não existe; de que ele nada mais é do que o período ou o prazo que se tem para as mudanças, a deterioração e o aniquilamento da criatura animada e inanimada. Outra certeza que tenho é que o tempo não passa, mas somos nós que passamos pelo (através do) tempo.

Essas divagações filosóficas – nada práticas ou comezinhas –, parecem ser coisa de louco! Mas, com certeza, não são os versos que se encontram neste livro intitulado Variações no Tempo, que a Hildette Rangel Enger, poetisa de primeira grandeza, escreveu com enternecimento:

Vem / Que o vento boêmio / Quer te mostrar / Os encantos todos / Das calçadas ermas (poema “Convite”);

No quarto antigo / Cheirando a ontem / Te faço menino / No meu colo / Me fazes menina / Em tuas mãos...  (poema “Vida”, 1990);

Só eu e meus sonhos / Neste recomeço / Me dando enfim / Um tempo para existir (poema “Recomeço”).

Conheço a Hildette Rangel Enger há mais de cinco lustros. Ela foi uma das pérolas que tive o prazer de encontrar no seio da querida Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Regional do Estado de São Paulo (Sobrames – SP).

Baiana guerreira graduou-se na Faculdade Federal de Medicina da Bahia e, estimulada pelo irmão, também médico, que já vivia na pauliceia desvairada de Mário de Andrade (1893-1945), veio para cá e aqui se aprimorou no hospital da centenária Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Casou-se com um sueco, o “Bo”, falecido há poucos anos, com quem viveu uma linda história de amor. Acabou se radicando na outrora “Terra da Garoa”, onde constituiu família e exerceu a medicina por décadas, com denodo e afinco.

Quanta sensibilidade Hildette retém em seus versos! Eis alguns deles garimpados em seus poemas a título de ilustração:

Azuis nasceram / Estes meus versos / Que falam de teus olhos / Do céu, do mar / E da moça que sonha / Na janela / De uma casa azul (poema “Azul”, 1962);

E na noite longa / Que há de vir / Quando te fores / Na solidão plena / De tua presença amiga / Minha saudade / Será triste e alegre / Ao mesmo tempo / Como um entardecer... (poema “Saudade”, 1961);

Eternidade / A imensidão do mundo / Resumida no espaço / Dos teus braços (poema “Eternidade”);

Preciso apenas visitar / As profundezas deste mar / Com seus segredos / Para buscar / O que restou de mim (poema “Busca”).

Quantos segredos, histórias, compromissos e intimidades escondem-se em versos como estes:

Tarde quieta e fria / Nem crianças / Nem rosas / Nem pardais / Nem vozes / Para saudarem / Nosso retorno / Em busca do tempo... / Dá-me tua mão / Que estou ficando triste / Anoitece (poema “Visita ao Passado”);

Mas eu quando desperto / Assim sonolenta / Em teus braços / Tudo me parece novo / Tudo me parece / O instante da criação! (poema “Estranhamento”);

Enquanto te espero / Penso no tempo / Que já me fez viver / Tantas primaveras / Sem ter colhido flores / E nos pirilampos todos / Que tive entre as mãos / Pensando ser estrelas (poema “Enquanto te Espero”).

Soteropolitana, Hildette plasmou desde a sua juventude, na fertilíssima Terra de Todos os Santos, sua esmerada capacidade de versejar, aprimorando sua sensibilidade estética no exercício da divina ars curandi.

Seus poemas são cativantes e enternecedores, mas a triste realidade social do nosso mundo-cão também não escapou do seu olhar atento e meigo:

E agora pensando / Pergunto a mim mesma: / Será que há no céu / Lugar reservado / Para o Pé de Moleque / Menino pretinho / Que morreu tão sozinho / Sem pão sem ninguém? (poema “Pé de Moleque”);

Subversiva é a mãe / Que consegue parir / E alimentar filhos / Neste país estranho / Onde tantas crianças / Morrem / Antes de verem a luz do dia / E tanta campanha se faz / Pra anticoncepção (poema “Subversiva”);

Portador de HIV / Fala sorrindo / Pra quem quiser ouvir / Que seu amor / É um menino / Que se droga pra não sofrer / E ele pretende salvar (poema “Um Retrato Falado”).

O poeta não somente consegue captar e traduzir em versos a realidade e as vicissitudes que a vida oferece, mas também utiliza de sua arte para extravasar seus sentimentos e emoções. Por vezes, escrever lhe produz uma catarse, no corpo e na alma, e isso acaba se tornando uma espécie endorfina ou de poção medicamentosa: Faço da palavra / Um alívio / Para minhas dores / Uma canção suave / Para me embalar (poema “Construções”). A propósito, a própria Hildette disse-me que em Variações no Tempo, obra que reúne poemas de sua juventude misturados com outros atuais, escrever tem sido um instrumento terapêutico que a tem ajudado a atravessar tempos difíceis.

Mas, Hildette também sabe expressar de modo singelo e cândido seu amor:

Que responderei aos pardais / Que nos viram juntos / Aquela tarde / Se me perguntarem / Onde está ele? (poema “Indagações”);

Fecha teus olhos de manso / Assim... assim... / E dorme / Ouvindo de leve / Quase imperceptível / A canção do meu beijo / Em tua boca (poema “Berceuse”).

Assim como seu amargurado luto:

Não mais espiaremos juntos / O pôr do sol / Nas tardes de verão... / Nem mais veremos / De mãos dadas / Estrelas nascerem ao anoitecer (poema “Desconstrução”);

Falta um pedaço / De mim / Que se foi com você... (poema “Sozinhez”);

Em cada parede da casa / Ficou um silêncio / Cheio de palavras / Que não mais serão ditas (poema “Lembranças”);

Aqui dentro / O choro contido / Aplacando a fome / De te abraçar de novo / E eu nem sabia / Que te amava tanto!  (poema “Eu nem Sabia”).

É do escritor austríaco Franz Kafka (1883-1924), o aforismo: “O tempo é teu capital; tens de o saber utilizar. Perder tempo é estragar a vida”, condição que Hildette certamente não se enquadra, haja vista o capital humano que soube muito bem empreender em sua família, em sua profissão, enfim, em sua vida, estando belamente sumariado em seus versos, fragmentos desses momentos, neste volume.

Fui honrado com o convite da amiga Hildette Rangel Enger de fazer uma apresentação de seu livro Variações no Tempo, mas ao ler seus poemas e conhecendo parte de sua vida e de suas agruras, não somente me emocionei, mas me entusiasmei tanto, que quase escrevi uma resenha dessa obra. Paro por aqui, pois se continuar acabarei reproduzindo todo seu livro e privando o leitor de sentir o mesmo enlevo que experienciei.

Que venham outros belos poemas e livros como este de Hiltette Rangel Enger!

 

[1] Prefácio do livro Variações no Tempo, da poetisa Hildette Rangel Engler. Scortecci Editora, São Paulo, 2015, páginas 9-13.