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Helio Begliomini - “O homem, esse ser tão débil, recebeu da natureza duas coisas que deveriam fazer dele o mais forte dos animais: O raciocínio e a sociabilidade.”

Lúcio Anneo Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), advogado, filósofo e escritor romano.

Li com interesse e atenção o artigo “Limites da Liberdade de Expressão” do sheikh Muhammad Ragip al-Jerrahi, representante da Ordem Sufi Halveti Jerrahi no Brasil, publicado na página 20 da Revista Família Cristã – Ano 81 – no 951, março de 2015.

O pano de fundo da matéria foi motivado pelas charges – quaisquer que sejam –, alusivas ao profeta árabe Muḥammad ou Mohammad ou ainda Moḥammed, mais conhedido entre nós por Maomé (570-632 d.C.), ou aos valores islâmicos, que se tem tornado intoleráveis aos seus representantes fundamentalistas. Ações violentas materializaram-se com forte repercussão mundial, por ocasião do atentado à sede parisiense do jornal satírico francês Charlie Hebdo, em 7 de janeiro de 2015, causando mais de 10 mortos.

Não há dúvida de que a liberdade de expressão deva ter limites, os quais devem sempre se situar respeitosamente na fronteira da mesma liberdade de expressão de outrem, de uma grei, instituição, valores ou crença.

Contudo, o que não ficou claro pelo sheikh Muhammad al-Jerrahi é que atitudes ofensivas ou injúrias sofridas devam ser questionadas; civilizadamente apuradas e avaliadas pela Justiça e não pelas próprias mãos. Ao contrário, ele parece implicitamente justificar e até estimular subliminarmente ações desse tipo ao referir: “Escarnecer, mesmo a própria pessoa, sua raça, sua cultura, seus pensamentos ou suas crenças, ao diminuir o outro, estigmatiza, isola e exclui de uma convivência saudável no meio social, justificando agressões (grifo nosso), chegando até a negar-lhe a própria existência como indivíduo ou como nação”. E aqui paira uma dubiedade: A quem se chega a negar a existência como indivíduo ou nação? – Ao que é injuriado ou ao autor das ofensas?!

Assim, não se tem visto por parte dos líderes religiosos e representantes governamentais de países mulçumanos o combate explícito, efetivo e veemente de radicais encastelados em grupos bárbaros – extremamente belicosos e agressivos – como Al-Qaeda[2], Talibã,[3] Boko Haram[4] e Estado Islâmico. Essa omissão pode sugerir que alguns deles ficam aliviados ou até felizes intimamente, quando ocorrem baixas de “infiéis” ou de agressores à fé com a selvageria produzida pelos radicais, comportando-se tais quais lobos disfarçados de cordeiros. E neste contexto bem se aplica as palavras de Martin Luther King (1929-1969), prêmio Nobel da Paz em 1964: “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética... O que me preocupa é o silêncio dos bons”.

Ainda em seu artigo, em referência aos preceitos de Maomé, sheikh Muhammad al-Jerrahi assinala: “O prófeta (saws[5]) nos ensinou e orientou a confiar plenamente na Justiça Infinita de Deus, que nesta e na Outra Vida, sempre faz o acerto de contas final. Portanto, é fundamental cuidarmos, para, perante Ele (O Altíssimo), não sermos qualificados como injustos ou criminosos”. E complementa: “Também nos ensinou, conforme consta no Sagrado Corão, que não pode haver coação ou constrangimento em religião, e cada ser humano deve ter o livre direito de escolher sua crença. Na religião islâmica, portanto, o direito à liberdade é fundamental: a liberdade de crença, de pensamento e de expressão”.

Ora, mediante estas palavras tão belas e sensatas – dentro do contexto da “liberdade de expressão” – sem querer defender, abonar ou estimular, como entender em alguns países muçulmanos o enforcamento e a humilhação pelo apedrejamento até a morte, respectivamente de homossexuais e de mulheres que tenham cometido adultério?!

Como entender a “liberdade de crença” no islamismo quando existem países nos quais é restringido, coibido e até proibido a prática de outras religiões além da muçulmana?! Onde se entende a “liberdade de crença” no islamismo quando se constata em diversas nações que, muçulmanos convertidos a outras crenças, tornam-se juntamente com suas famílias discriminados, perseguidos e até mortos, caso não mudem de cidade, estado ou país?! Como se entende a “liberdade de crença, de pensamento e de expressão” no islamismo quando a escolha para o matrimônio não é livre, mas uma oferta, arranjo ou imposição dos pais, particularmente do lado da mulher?!

Neste quesito, conheci na minha cidade de São Paulo, uma jovem muçulmana que veio do interior do Líbano – um dos países do Oriente mais abertos à liberdade de expressão! –, que foi dada como esposa a um conterrâneo que aqui vivia. Essa jovem é parenta de outra muçulmana, aqui radicada há mais tempo e já ocidentalizada, mas sem perder sua origem e fé, que se permite até praticar natação em academia juntamente com alunos masculinos. Apesar das aparências de emancipação, ela expressou algumas vezes à minha esposa que suas filhas só poderiam se casar com mulçumanos e de seu grupo – “druso[6]”, pois caso contrário, seriam fria e sumariamente deserdadas e não mais consideradas membros de sua família, de sua afetividade e de seu convívio! Se isso pode acontecer com tais imigrantes em São Paulo, a maior metrópole da América do Sul, torna-se temeroso imaginar o que poderia ocorrer em sua cidade ou aldeia de origem!

Atendi, em meu consultório, um adulto jovem de aproximadamente 35 anos, que de pastor batista havia se convertido há uns três anos ao islamismo. Após uma amistosa conversa, depreendi e lhe expressei como muita surpresa, como alguém que presumivelmente havia conhecido e vivido as maravilhas das virtudes cristãs,  pudesse se alinhar na defesa intransigente da fé islâmica, manifestando laivos de belicosidade com outras crenças, menosprezando até a fé que tivera! Ademais, foi igualmente surpreendente observar como agora considerava a mulher, um ser ao menos num patamar mais baixo que o homem.

Outro paciente meu, também muçulmano e contando com uns 35 anos, mais liberal e falando-me da fé muçulmana que professava, disse-me que se um homem ao se casar, descobre que sua mulher não era virgem, teria todo o direito pela religião de dela se separar. Falando-lhe da equiparação dos gêneros em sua crença, indaguei-lhe se ocorresse o contrário – a mulher descobrisse que seu marido ao casar não era mais casto – ela teria o mesmo direito religioso de dele se separar? Ele, surpreso com minha pergunta e sem jeito, percebera a inferioridade dissimulada que a mulher era tida no islamismo, pois, a contragosto me confirmou que esse preceito só valia para o homem!...

Contudo, este é um pormenor no que concerne ao tratamento secundário, terciário ou quaternário que se dá à mulher em vários países islâmicos, para não dizer da barbárie impetrada por radicais na mutilação de parte do genital feminino externo; do sequestro de mulheres no Iraque pelo Estado Islâmico (agosto de 2014) ou na Nigéria pelo grupo Boko Haram (maio de 2014) para servirem de escravas sexuais; da proibição ao trabalho fora do lar; ou mesmo de ter acesso ao ensino, como ficou conhecido o emblemático caso de Malala Yousafzai, paquistanesa de 14 anos que, em outubro de 2012, foi alvo de um atentado do Talibã com um tiro no pescoço e outro na cabeça, por defender a educação de meninas. A fim de que não morresse, ela teve que se mudar de país e aí, com certeza, não somente por falta de “liberdade de expressão”, como também por insegurança e pela ausência dos mais básicos e elementares direitos humanos.

Por fim deve-se salientar a bestialidade dos fundamentalistas talibãs na destruição das imagens de Buda no Vale de Bamiyan, a 240 km de Cabul, no Afeganistão, em 2001. As duas estátuas mais proeminentes tinham 55 e 38 metros de altura, e  mais de 1500 anos de existência! Em 2015 o mundo novamente ficou estarrecido com a destruição jihadista[7] por asseclas do Estado Islâmico de estátuas e artefatos milenares (algumas do século VII a.C.!) no Museu Ninevah, em Mossul, no Iraque. Nesses e noutros insensatos, inqualificáveis e injustificáveis crimes lesa-humanidade, cometidos em nome da fé islâmica, perdeu-se parte da história da civilização!!!

Nesses breves contextos deve-se perguntar: quantos “islamismos” existem? Será que sua doutrina é genuinamente compreendida? Será que é compatível com o conhecimento, a ciência e a sociedade atual que deixou a pré-história há milênios?

Com certeza, constata-se hodiernamente que atos bárbaros, assassinatos injustificáveis e cruelíssimos; homens, mulheres e crianças-bomba; destruições de patrimônios da humanidade são cometidos em nome de sectários da crença islâmica, fatos horrendos e chocantes não vistos em outras religiões. Nesse cenário tétrico e apavorante são bem-vindas as palavras de Flora Tristan (1803-1844), escritora, pensadora, socialista e feminista francesa: “Duas coisas me surpreendem: A inteligência dos animais e a bestialidade dos homens”.

Ademais, há décadas muçulmanos tem paulatinamente emigrado para diversos países da Europa e da América onde se encontra realmente a “liberdade de expressão”, pois na imensa maioria desses países existe estado democrático de direito, e não tiranias, anarquias, transmissão familiar de poder, califados... Nesses países do Ocidente os muçulmanos se radicam; trabalham e prosperam; multiplicam-se rapidamente; e silenciosa e camufladamente conquistam e convertem neoadeptos, premissas essas não vistas com as mesmas cores, tons e intensidades na maior parte de seus países de origem, quer sejam da África quer do Oriente Médio.

Portanto, entre o Oriente muçulmano e o Ocidente cristão, a “liberdade de crença, de pensamento e de expressão” salientada pelo sheikh Muhammad Ragip Al-Jerrahi possui visivelmente dois pesos e duas medidas, infelizmente!

[1] Este trabalho, sob pseudônimo, recebeu o segundo lugar em ensaio no concurso literário anual da Academia Brasileira de Médicos Escritores – Abrames, recebido em sessão de gala durante a Semana da Abrames, realizada de 19 a 21 de novembro de 2015, na cidade do Rio de Janeiro. Revista Eletrônica Opinias – opinias2014.blogspot.com.br – 23 de janeiro de 2016; Boletim Doctor Line no 67 (janeiro-março): 4-7, 2016; e Boletim de Informações Urológicas – BIU (janeiro-fevereiro): 20-21, 2016.

[2] Al-Qaeda: “A Base”, em árabe.

[3] Talibã ou também transliterado Taliban, Taleban ou talebã, em árabe, significa “estudantes”.

[4] Boko Haram significa “a educação ocidental é proibida”.

[5] Saws: Entre os religiosos muçulmanos as citações ao Profeta Muhammad são seguidas desta expressão – “saws” – cujo significado é “que a paz e as bênçãos de Deus estejam sobre ele”.

[6] Os “drusos”, embora não sejam considerados muçulmanos por muitos adeptos dessa religião, é uma facção religiosa autônoma que segue os preceitos do islamismo. Falam o idioma  árabe e utilizam de seus mesmos costumes. Compreendendo cerca de um milhão de adeptos, residem, mormente no Oriente Médio – Líbano, Israel, Síria, Turquia e Jordânia –, além de comunidades expatriadas nos Estados Unidos da América, Canadá, América Latina, Austrália e Europa.

[7] Jihadistas: adeptos da Jihad – guerra santa muçulmana; luta armada contra os infiéis e inimigos do Islã.