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  • Fonte: Gabriel Kwak1

A universalidade e atualidade da visão do filósofo e historiador da matemática Bento Caraça, de acordo com João Tomás do Amaral

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Muito dos ensinamentos de Bento de Jesus Caraça influenciam concepções e propostas educacionais e curriculares até hoje. É esse o fulcro da tese de doutorado apresentada pelo Prof. João Tomás do Amaral, presidente do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, intitulada “Bento de Jesus Caraça - uma visão sobre o valor humano e o valor social da matemática e suas implicações no ensino” e defendida em 2014 na Faculdade de Educação da USP, sob orientação do Prof. Nilson Machado.

É imperioso reconhecer que o educador português reformou a linguagem do ensino de Matemática e foi um potentado da divulgação científica, tendo grande acolhida no Brasil.

A tese que tivemos o gosto de perlustrar trata-se de uma pesquisa sólida nos escritos de Bento de Jesus Caraça em busca do seu legado, contribuindo sobremaneira para sistematizar a obra do mestre luso. Debruçando-se sobre esse vasto material a respeito da vida e obra desse pedagogo e expoente antifascista, João Tomás do Amaral destacou as virtudes poliédricas, as muitas facetas de Bento. João aborda, inclusive, suas dimensões de filósofo e de sociólogo. Conclui-se que Caraça era um analista penetrante dos problemas do seu tempo.

João Tomás do Amaral e seu biografado entendem a Matemática como essencial para a formação integral da pessoa. Eles convergem no sentido da crença numa escola sem privilégios.

Na sua tese luminosa, João mapeou as ideias matemáticas correntes no século passado. Resgatou reflexões muito importantes do autor de Interpolação e integração numérica sobre a Educação, metodologia do ensino da Matemática e interação do homem com o meio.

Ao estudar as ideias fundamentais da ciência matemática, João esmiuçou a visão humanística de Caraça. Não resta dúvida que João e Bento de Jesus estão afinados na defesa de um ensino motivador e voltado para a Cidadania que renegue um ensino elitista da Matemática. Ou seja, a “Matemática para todos” (em contraste com a “Matemática para poucos”) pressupõe os conceitos fundamentais da matemática ministrados sob a abordagem humana, social, histórica e filosófica.

Em outro passo, João Tomás compara os estilos didáticos de Caraça e do carioca Manuel Amoroso Costa (1885-1928), que exploravam filões muito semelhantes.

O divulgador científico que emerge das páginas dessa tese de doutoramento é o entusiasta da cultura geral, que julgava dever ser disponível a todos e entrelaçada à realidade social e política. Daí porque avulta no estudo de João o diretor da coleção Biblioteca Cosmos.

A monografia destacou, ainda, reflexões sobre a essência do homem, ideias sobre o processo evolutivo do homem, sobre a missão da cultura, sobre os rumos da ciência.

Em suma, Caraça renovou o pensamento científico e dialético também ao fundar instituições científicas. Propôs em 1938 junto com os professores Aureliano de Mira Fernandes e Caetano Beirão da Veiga a implantação do Centro de Estudos de Matemática aplicada à Economia (CEMAE) junto ao Instituto Superior de Ciências Econômicas e Financeiras (ISCEF) da Universidade Técnica de Lisboa, tendo sido seu diretor da fundação até a extinção, em 1946.

João Tomás do Amaral não se furtou a vasculhar suas conferências, suas obras didáticas, sua bibliografia passiva, explana sobre como o expoente luso constrói seu raciocínio matemático, discutindo os problemas internos dessa ciência, como o conceito do Zero, o problema da medida. João mostra o que melhorou nas reedições, comenta e passa em revista obra por obra.

Entre todas essas dimensões realçadas, havia o Caraça historiador, pois mesmo nos seus livros didáticos o educador não negligencia a parte histórica do tema, o que também o identifica com o maior especialista brasileiro na sua obra.

João situa a controvérsia de Caraça com Antônio Sérgio que os colocou em polos opostos no que concerne à Teoria das Formas de Platão e sobre a tradução do grego, o primado do número, o primado da Figura, além da Geometria Analítica em face da filosofia platônica. Mas, nesse aspecto, fico por aqui por me falecer autoridade para discorrer sobre o pensamento de Platão relativo à Ciência e sobre a primazia da ideia em face da imagem. Apenas recordo, com base nessa monografia tão instigante, que Bento de Jesus Caraça deliberou no seu livro grafar Forma com a inicial maiúscula para diferenciar da forma, no sentido mais comum. Em resumo, tratou-se de uma polêmica de fôlego mas amistosa sobre aristotelismo e platonismo.

Mas Sérgio não deu a mão à palmatória.

Além disso, João Tomás do Amaral salienta Caraça como pensador da ciência que analisa os fenômenos a partir do devir e da permanência. O mestre português, outrossim, debateu o ensino de Matemática no Ensino Médio (chamado de ensino “liceal”) em Portugal, inclusive, a pertinência do ensino de logaritmos.

A leitura da tese de João Tomás do Amaral nos leva à conclusão de que pode haver mais inéditos e dispersos de Caraça ainda não coligidos em acervos públicos e privados pelo mundo.

João fez um histórico inclusive do aspecto de inacabamento de alguns trabalhos do professor. Os próprios escritos de Caraça dão muitas pistas nesse sentido.

O prefácio do primeiro volume da obra Conceitos Fundamentais da Matemática expõe o plano da obra prevista para quatro volumes, embora o quarto tomo não tenha sido publicado. Estava programado para a obra cuidar das noções de quantidade, lei, evolução e classificação. Caraça ficou devendo tratar da classificação, no entanto. Mesmo assim, João reiterou a qualidade e atualidade da obra. A obra, segundo o autor, renovou a linguagem dessa ciência e sua riqueza filosófica. A obra inspirou, inclusive, a explanação contida nos manuais de Matemática brasileiros.

João conjetura que num quarto tomo do livro Conceitos Fundamentais seriam retomados alguns conteúdos incompletos e pendentes de conceituação.

A repercussão da Biblioteca Cosmos chegou até o Brasil como se pode notar de comentário na imprensa do conceituado erudito cearense Djacir Menezes. A Biblioteca Cosmos enfrentou dificuldades na sua marcha no período delicado do entreguerras, sem contar os óbices que Caraça encontrou pela frente dada a má-vontade que o salazarismo então vigente lhe votava. Desgraçadamente, o falecimento de Caraça levou à extinção da monumental coleção de divulgação científica.

João Tomás enriqueceu sua tese com apêndices muito importantes a partir da varredura em arquivos, cartas, dispersos. Indiscutivelmente, essa documentação daria ensejo a uma obra à parte. Senão, vejamos.

Vale notar que o atual presidente do IHGSP realizou exaustivas pesquisas no espólio cultural de Bento Caraça deixado por seu filho, João Manuel Gaspar Caraça, sob custódia da Fundação Mario Soares. João realizou um aturado fichamento desse material que se expressa num sem-número de apontamentos. Foi o achamento de um manuscrito do matemático com o esqueleto da obra Conceitos Fundamentais... que permitiu ao pesquisador inferir que o table of contentes do livro estava incompleto levando-se em conta o plano original. Além disso, esse esquema escrito revelou outra informação. “Curiosamente, também encontramos, nesse documento, a noção de Invariante grafada com uma anotação lateral por um ponto de interrogação entre parênteses”, observa João.

Essa documentação reunida na Fundação Mario Soares possibilitou a João seguir as pegadas de Caraça no enfoque das noções do livro. João Tomás inclusive reproduz cartas oriundas de Universidades brasileiras interessadas em adquirir um lote de exemplares de livros de Caraça.

Não contente, João mapeia livros brasileiros que referenciam obras de Caraça como fonte bibliográfica, livros dirigidos ao Ensino Fundamental, Médio, Superior e à formação de professores.

Acresça-se que Caraça foi chamado a colaborar com a Escola Politécnica da USP mas o plano não se concretizou por diversos fatores. Foi provocado a se engajar junto à USP mediante correspondência, inclusive, do insigne mestre português da crítica literária que se radicou no Brasil — e na própria USP — com grande brilho, Prof. Fidelino Figueiredo, sogro do inesquecível professor Antônio Soares Amora (e guru dos mestres Massaud Moisés, Cleonice Berardinelli, Segismundo Spina e, salvo engano, Nelly Novaes Coelho). Não foi possível a Caraça aceitar os convites tampouco ser sensível às sondagens para colaborar com propostas e sugestões na condução programática e na grade curricular de cursos.

Concluimos enfatizando que Bento de Jesus Caraça sob o prisma de João Tomás do Amaral visava à cultura geral tanto para o homem comum quanto para o homem técnico e ampliá-la mirando uma experiência de liberdade e cidadania. Discutindo nos seus artigos especialização e cultura geral, Bento de Jesus Caraça se bateu pela democratização do conhecimento e da cultura.

Quem se debruça sobre a História da Ciência não pode deixar de ler a tese de doutorado de João Tomás do Amaral, que, a bem da esfera culta do país, precisa ser transformada em livro de destilada penetração nas livrarias, porque a contribuição “caraciana” em prol do trabalho com as ideias fundamentais antes de ingressar nos temas propriamente ditos precisa ser mais bem difundida.

 

1 Gabriel Kwak é jornalista, escritor e revisor de texto. É coordenador editorial do BA Online, departamento de educação digital do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Pertence à Academia Cristã de Letras, Academia Paulista de Jornalismo, entre outras agremiações culturais.