Há alguns dias, numa aula de Filosofia na faculdade onde leciono, procurei interessar os alunos pela filosofia de Blaise Pascal (1623–1662), que além de filósofo foi também um grande matemático, físico, escritor, teólogo e até inventor da máquina de calcular (ainda hoje exposta do Museu de Artes e Ofícios de Paris).
Parti da constatação da realidade em que vivemos. Conhecemos pessoas e comunidades que vivem no respeito, na solidariedade, numa abundante generosidade, o que nos deixa esperançosos. Mas ao lado disto vemos também demonstrações de desrespeito, mentiras, manipulações, violência implacável, extermínios, disseminação do ódio.
Há noventa anos que o Brasil conhece a obra do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Holanda, “Raízes do Brasil” (Jose Olympio, RJ, 1936). O autor procurou mostrar que o que caracteriza o brasileiro é a cordialidade (o “homem cordial”), isto é, alguém que tem a tendência de agir mais com o coração do que com a razão. Não que ele seja afeito à passividade e submissão, pois a cordialidade seria até uma forma de resistência a uma tradição autoritária inculcada pelo colonialismo escravocrata, frustrando a constituição de uma política democrática em nosso país. Até hoje temos uma democracia formal, mas ainda oligárquica, classista, longe de uma sociedade onde caibam todos. O mundo ainda é forjado de imensas massas sobrantes, súcubos das mentiras, das retaliações, das exclusões, das milícias.
Pensemos: Até onde pode chegar a maldade humana, uma vez que nossa espécie é “sapiens/demens”? Poderá levar ao autoextermínio da raça humana. A inimizade, diz Buarque de Holanda, pode ser tão cordial como a amizade, já que uma e outra nascem do coração. Por incrível que pareça, o coração também pode gerar perversidade.
Pascal criou uma distinção entre “esprit de géometrie” e “esprit de finesse”. O primeiro é a razão calculatória, funcional, instrumental analítica, de viés cartesiano, O segundo é fruto do acolhimento do judeo-cristianismo, de viés pascalino (a “logique du coeur”, “o coração tem razões que a própria razão desconhece”). O espírito de geometria tende a outorgar um valor absoluto à razão e ao espírito científico; tudo o que não se submeter ao crivo da razão perde legitimidade. Por isso ele sempre corre o risco de desprezar a tradição cristã, assim como a metáfora, a alegoria, a poesia, as artes, a filosofia estão sendo drasticamente reduzidas, na constatação do neurocientista Dr. Sidarta Ribeiro, tornando as novas gerações extremamente literais. Ficam banidas inúmeras oportunidades, abrindo as portas para um tipo de civilização moldada pelos caixilhos de uma racionalidade cega, logo beirando a irracionalidade.
Assim pensando e agindo, nosso mundo corre o risco – desde o Iluminismo (1715-1789) – de mais um reducionismo, isto é, o risco de alijar muitas oportunidades espirituais que permitem conhecimentos e ações sem passar pelos exclusivos cânones racionais.
Ao afogarmos o coração, o caminho poderá ser o do genocídio (em face da espécie) e do ecocídio (em face da natureza).
Poderíamos então falar da luta atual para uma nova conquista: os direitos do coração.
Há mais de quinhentos anos, um sábio texto da cultura maia (Popol Vuh) ensinou: “Quando tens que escolher entre dois caminhos, pergunta-te qual deles tem coração. Quem escolhe o caminho do coração jamais se equivocará”.
(*) Jornalista profissional e professor de Filosofia, titular da Cadeira nº 28 da Academia Cristã de Letras.