Todo o mês de setembro, tradicionalmente, é considerado como o Mês da Bíblia, porque nele, no dia 30, é comemorado o Dia da Bíblia. A razão é que neste dia morreu São Jerônimo (347-420), o grande tradutor da Bíblia dos originais hebraico e grego para o idioma latim, no século IV, obra conhecida como Vulgata, além de ter sido um comentador de muitos livros do Antigo e do Novo Testamento, o que lhe valeu o título de “patrono dos estudos bíblicos”.
As pessoas bem informadas, mesmo sem qualquer fé religiosa, reconhecem a importância cultural deste trabalho, solicitado pelo papa Dâmaso (305-384), de quem Jerônimo foi secretário. Sigmund Freud publicou, em 1927, um livreto intitulado “O futuro de uma ilusão” (Imago: Rio, 2001) em que prognosticava um futuro sem religião, pois a humanidade renunciaria às ilusões que as religiões comportam. Creditava essa renúncia ao inevitável progresso da ciência. O pai da psicanálise arrematava: “Nossa ciência não é ilusão (...) Ilusão seria imaginar que aquilo que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar.”
Não sei se Freud, vivendo hoje, cultivaria ainda essa “religião da ciência”, mas ainda tem seguidores que acham que a religião não é feita de outro material senão a ilusão.
Podemos ilustrar o anacronismo dessa visão se observarmos o que vem sucedendo com as ciências bíblicas. Desde a metade do século 16, o judeo-cristianismo vem investindo o melhor de sua inteligência no estabelecimento do que se chama de texto bíblico mais próximo do original. O patrimônio cultural das principais religiões, universidades, especialistas é admirável. São imensas as conquistas em crítica textual, crítica histórica, critica literária, filologia, arqueologia, história, gêneros literários, linguística, literatura comparada etc. Só um desinformado deixaria de admirar estas conquistas que trouxeram mais liberdade, de enormes consequências para o presente e o futuro. Difícil imaginar outra produção literária tão implacavelmente submetida ao crivo das diversas ciências humanas quanto a Bíblia.
É verdade que, nesse percurso, ainda encontramos fundamentalismos, geradores de intolerâncias e preconceitos. Mas isso se deve à falta de desenvolvimento e abertura culturais, à ignorância, à preguiça mental, ao cultivo da superficialidade.
Seria útil se nossos intelectuais, nossas universidades e nossa imprensa fossem capazes de superar a falta de letramento teológico e se dessem conta de que há muita gente sábia que conseguiu recuperar a dimensão simbólico-antropológica das narrativas bíblicas. Evitaríamos definitivamente a procura nos textos bíblicos do que eles não podem oferecer; neles descobriremos, para além de concordismos e discordismos, visões complementares ou estimulantes para o estudo da natureza e da vida, ao que se dedica também a ciência.
A Bíblia contém uma ilimitada reserva de sentido e caráter utópico, inclusive no que este adjetivo tem de transformador. É um dos mais antigos mananciais dos sonhos e dores da humanidade, das alegrias e esperanças, de experiências horizontais e verticais dificilmente redutíveis aos limites da pura razão. Por isso, a leitura da Bíblia, para usar a linguagem de Pascal, deve ser feita não com “esprit de géometrie”, mas com “esprit de finesse”.
(*) Jornalista e professor de Filosofia, integrante do colégio de tradutores da “Bíblia de Jerusalém”, membro da Academia Cristã de Letras.