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  • Fonte: Orbis News - Luiz Eduardo Pesce de Arruda - 1/9/2022

Nestes tempos de pós-modernidade, novas causas e os grupos reivindicantes ganham visibilidade perante a opinião pública.arruda foto 2 bf02e

É a “modernidade líquida “ à qual se refere Zygmunt Bauman, onde a vida, as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis, como os líquidos.

Como reflexo disso, a linguagem muda a cada instante, como um caleidoscópio. Surgem novos termos e outros fenecem rapidamente.

Termos racistas, homofóbicos, misóginos são necessariamente abandonados, banidos do cotidiano e das mídias, em respeito à diversidade e aos direitos individuais pois, em uma democracia, os desiguais se completam e dão maior força e vigor à cerzidura social.

Essa efervescência faz também, deste momento, um tempo favorável ao nascimento de neologismos - palavras novas, ou recombinações de palavras existentes, que enriquecem o nosso vocabulário: assim, por exemplo, homo – igual associado com fobos – medo, resulta em homofobia.

Há dez anos, fora dos laboratórios digitais, quem saberia dizer o significado de metaverso? Ou de pix?

Como lidar com essa sociedade em mudança, com formulações inéditas e visões de mundo tão distintas?

Essencial, de princípio, é praticar a alteridade. Antes de tentarmos interpretar o mundo segundo nossa visão particular, cabe tentar enxergar o mundo pelo olhar do outro. Exercício muito difícil que, no Brasil, teve em São José de Anchieta um modelo.

Jovem ainda, antes mesmo de sua ordenação, Anchieta, fiel à orientação da Companhia de Jesus que propugnava que os missionários deveriam exprimir-se na língua local, priorizando-a em face de seu próprio idioma natal, encantou-se pelo idioma tupi.

Meses de convivência com os habitantes originários do planalto de Piratininga permitiram que se expressasse corretamente em tupi.

Além de se dedicar à alfabetização - das crianças, filhas dos colonos e curumins - Anchieta estudou diligentemente a língua tupi, o que lhe permitiu elaborar a primeira gramática brasileira, a “Artes de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil”, impressa em 1595 em Coimbra e ainda hoje utilizada como livro didático para o ensino do tupi em nossas universidades.

Escrita em apenas seis meses, a gramática descreveu e sistematizou uma língua “nova”, até então difundida apenas oralmente, o que representou o marco inicial dos estudos linguísticos na luso américa e a segunda gramática de uma língua indígena, antecedida apenas pela obra do frei Alonso de Molina, que publicou sua “Arte de la Lengua Mexicana y Castellana” no México, em 1571.

Foi a alteridade que permitiu a Anchieta apreciar e registrar, igualmente, as primeiras notações musicais colhidas no país e introduzir o teatro no Brasil, com textos em tupi e motivos de edificação moral e religiosa.

Se a alteridade enriquece, o preconceito e a discriminação nos empobrecem e podem ser associados à ignorância, que tem na arrogância a sua irmã gêmea. E aonde uma vai, a outra vai também.

Por isso mesmo, o Rotary International é o maior patrocinador mundial de intercâmbio de jovens, partindo do princípio de que, imergindo em outras culturas e permitindo-se outros modos de ver o mundo, as pessoas superam as barreiras da incompreensão e da intolerância , promovendo a paz e a justiça entre os povos, sempre respeitando visões de mundo distintas da nossa. Conhecer, antes de formular juízos de valor.

Uma das discriminações ainda não codificadas tem sido a professiofobia, do latim professio – profissão, e do grego fobos – medo.

O desconhecimento da atividade profissional do outro, a formulação de imagens a partir de estereótipos, a eleição pela mídia de exceções como se fossem regra, tudo isso faz com que as pessoas elaborem uma imagem mental de profissões e de profissionais, atribuindo-lhes características generalizadas.

Se, por vezes, qualidades imerecidas são atribuídas genericamente a todos os profissionais de uma classe, é doloroso, por outro lado, que condutas individuais desviantes sejam tomadas como comuns a todos os membros da classe.

Um grande amigo meu, que é padre católico, erudito e vocacionado, revelou-me, entre chocado e triste, que ao entrar no metrô usando suas roupas clericais (o chamado “clergyman”), sentou-se ao lado de uma criança e próximo a outra. A mãe, assustada, rapidamente retirou as crianças de seus lugares e, tão logo possível, mudou-se de vagão.

  • Será que ela pensa que eu sou pedófilo porque sou padre? – perguntou-me.

Eu o confortei, disse a ele que fui coroinha dos seis aos quatorze anos, convivi com mais de trinta padres e nunca qualquer um deles se portou de modo menos digno para comigo ou meus colegas. Sem dúvida, uns eram mais legais, outros mais chatos, uns cultos outro menos eruditos, mas todos se portaram de modo impecável comigo e com meus colegas.
Para mim, que sou policial militar, é cansativo e desgastante escutar, por exemplo, que a pessoa mudou de opinião sobre a polícia e os militares depois de conversarmos.

  • Não sabia que a Polícia tinha gente estudada – dezenas de pessoas me disseram ao longo da vida, algumas delas ocupando cargos públicos relevantes. E que, inclusive por isso, teriam o dever de saber disso. Poderia dizer-lhes que foi o marechal José Pessoa quem concebeu, pioneiramente, o levantamento detalhado do quadrilátero da futura capital federal e idealizou o projeto do avião, no plano-piloto de Brasília. Ou que o almirante Álvaro Alberto é o pai do programa nuclear brasileiro e da CAPES. Ou que o coronel da FAB Ozires Silva concebeu e criou a EMBRAER. Ou que um capitão da PM de São Paulo, mais tarde professor da Poli, Moisés Szajnbok, concebeu e dirigiu por anos a fio a FUVEST. Ou da contribuição acadêmica de Carlos Magno Nazareth Cerqueira ou Jorge da Silva, ambos coronéis da PMERJ e professores da UERJ, para a compreensão da violência no Brasil.

Dançarinos, militares, pastores, professores, funcionários da FEBEM, pais de santo, políticos, em maior ou menor grau, advogados e jornalistas, todos somos vítimas, em maior ou menor grau, da professiofobia.
Participei de um processo seletivo, no final de 2021, objetivando trabalhar em uma entidade privada de serviço social, sem fins lucrativos, que busca a capacitação e a promoção do desenvolvimento econômico e competitividade de dado setor da economia.
Tudo correu bem até que o diretor foi informado de que o candidato era coronel da reserva da PM:

  • Não quero coronel trabalhando aqui! Eles são todos loucos e bolsonaristas!

Vivemos em uma democracia e temos, sim, coronéis que são bolsonaristas. E temos também coronéis que votam no Lula, na Simone Tebet e no Ciro, só pra citar os mais bem colocados no ranking das pesquisas de opinião para presidente. Temos policiais de direita, de centro e de esquerda. Temos policiais católicos, evangélicos, mórmons, judeus, muçulmanos, de matriz afro e ateus.

Se o gestor em pauta conhecesse um pouco da história das instituições, saberia que foi a esquerda militar que deu capacidade a todos os movimentos armados da história da esquerda brasileira, que deixaram o mundo das ideias e se viabilizaram no mundo das ações. Se não houvesse a participação de militares de esquerda, não teria ocorrido a chamada Intentona (nem, em oposição, o Putsch Integralista). Não teria havido a ANL, a campanha do “Petróleo é nosso”, a campanha bem sucedida para impedir o Brasil de enviar tropas à guerra da Coréia, não teriam surgido os grupos armados de enfrentamento ao regime militar.

Nelson Werneck Sodré e Luiz Carlos Prestes, embora coronéis, se vivessem hoje, por certo não votariam em Jair Bolsonaro. Outros votariam, pois as instituições não são monolíticas e seus membros ocupam um amplo espectro de opinião.

Consideremos que pessoas diferentes compõem quadros profissionais e têm dons inusitados. Basta nos darmos a chance de nos aproximarmos delas e com elas dialogarmos, antes de formular juízos de valor precoces e classificá-las seguindo estreitos cânones, formulados a partir do empirismo e do preconceito.

Bancários são chatos, amantes da rotina e sem criatividade? Meu gerente de banco é um talentoso e reconhecido compositor de música gauchesca.

Professores de zoologia alternam seus dias entre florestas e laboratórios? Paulo Vanzolini, o cantor da vida e das tragédias noturnas da Avenida São João, que o diga!

Conheçamos as pessoas antes de rotulá-las pela profissão que exercem. Isso nos enriquecerá e nos surpreenderá, na maioria das vezes, de modo muito positivo.

Luiz Eduardo Pesce de Arruda: Coronel veterano da Polícia Militar do Estado de São Paulo e doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie