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  • Fonte: Raquel Naveira

MÉDICOS E LIVROS; (em homenagem aos médicos da Academia Cristã de Letras de São Paulo)Raquel Naveira Fotos 3 7b2b4

O livro O Médico, do pedagogo, poeta e filósofo, Rubem Alves , um dos intelectuais mais famosos e respeitados do Brasil, apresenta-nos uma meditação humana a respeito dessa figura ao mesmo tempo lendária e humana que é o médico.

Rubem Alves reflete que antigamente a simples presença do médico irradiava vida, eles eram também uma espécie de feiticeiros, detentores de poder sobre a vida e sobre a morte. Naquele tempo os médicos sabiam das coisas. O médico era um herói romântico, vestido de branco.

Hoje, ser médico transformou-se num risco e ninguém acredita na sua santidade. São apenas portadores de conhecimentos especializados, que vendem serviços. Os médicos têm saudade de uma imagem que não existe mais.

Para Rubem Alves, a doença, emissária da morte e da perda, tem função iniciática: é por meio dela que se pode chegar a um maior conhecimento de nós mesmos. As doenças são sonhos sob a forma de sofrimento físico. A vida é uma entidade estética. O homem cria beleza como remédio para sua doença, como bálsamo para seu medo de morrer. A criação é fruto do sofrimento. Os artistas são doentes.

Vida e Morte são irmãs. A morte não é algo que nos espera no fim. É companheira silenciosa nos convidando à sabedoria da vida. A fé bíblica pondera que somente Deus pode curar. A cura é um dom divino oferecido aos homens. O médico, instrumento de algo superior, deveria sentir afeição profunda pelo ser humano, afagando suas dores e eliminando seus males.

Que livro magistral o Médico de Homens e de Almas, de Taylor Caldwell! Conta a história de São Lucas, o autor do Terceiro Evangelho, amigo dileto de Paulo, um dos seus mais fiéis colaboradores, o glorioso médico, um homem complexo e fascinante. Sua história é a história da peregrinação dos homens através das trevas da vida, do sofrimento e da angústia, da dúvida e do cinismo. Lucas, humildemente, reconhece Jesus como O Médico e se põe a seu serviço, depois de longas lutas interiores.

O acadêmico Murilo Melo Franco nos esclarece que sempre houve entendimento da Medicina com as Letras. Vários médicos foram também escritores. São pessoas inspiradas num ideal de beleza, de ciência e de cultura. Combinam a arte de medicar com a magia de escrever. Sentem atração pelas inquietações literárias. São mestres do bisturi, das receitas, dos laudos, das radiografias, mas também amantes da literatura, que encontram refúgio e consolo nos romances, nos ensaios, nos poemas.

A Academia Brasileira de Letras, com seu prestígio, solenidade e mistério, tem toda uma linhagem de magníficos médicos e cientistas, como os que se seguem: Francisco de Castro, baiano, professor de Clínica Médica, autor do livro de poesia, Harmonias Errantes; Osvaldo Cruz, pioneiro da Medicina Experimental, que erradicou a febre amarela no Rio de Janeiro; Aloísio de Castro, autor de obras musicais, literárias e médicas, como Semiótica do Sistema Nervoso; Fernando Augusto Ribeiro de Magalhães, obstetra e ginecologista, fundador da Pró-Matre, excepcional orador; Miguel Couto, reformador do ensino da Clínica Médica, autor de Diagnóstico Precoce da Febre Amarela; Miguel Osório de Almeida, criador da teoria matemática da radioterapia, escreveu o romance Almas sem abrigo; Antônio Austregésilo Rodrigues Lima, o Antônio Zilo, escreveu dois livros de prosa poética: Manchas e Novas Manchas; Clementino da Rocha Fraga, que publicou Fronteiras da Tuberculose; Júlio Afrânio Peixoto, baiano, doutorou-se com a tese Epilepsia e Crime, diretor do Instituto Médico-Legal; João Guimarães Rosa atuou como médico voluntário junto às tropas que combatiam o movimento constitucionalista de São Paulo, entrou na carreira diplomática, chefiando o Departamento de Fronteiras do Itamarati e escreveu o célebre romance épico, Grande Sertão: Veredas; João Peregrino da Rocha Fagundes Júnior, professor e presidente da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, escreveu o livro de contos Histórias da Amazônia; Maurício Campos de Medeiros, psiquiatra, autor de Psicoterapia e suas modalidades; Antônio da Silva Melo escreveu livros que alcançaram as fronteiras da antropologia, da moral e da filosofia como Religião: prós e contras e Estudos sobre o negro; Carlos Chagas Filho, organizador do Instituto de Biofísica; Deolindo Augusto Nunes Couto, piauiense, fundador do Instituto de Neurologia, autor de Clínica Neurológica. Além de Ivan Lins e Afrânio Coutinho, diplomados em Medicina, mas que não exerceram a profissão, um, atraído pelo positivismo e outro pela crítica literária. A Academia teve ainda Ivo Pitanguy, o famoso cirurgião plástico, mestre da estética.

Todos esses médicos não teriam se tornado cultores das letras se não tivessem, como afirma Celso Barros Filho, “a mente moldada à contemplação do lado espiritual do homem, onde se revela o ser sensível, o artista, com a capacidade de exercitar o talento pelo lado da emoção e fortalecer a vontade na busca do seu ideal”.

É interessante observar que quase todos esses médicos-escritores foram também professores, formaram escolas, gostavam de ensinar, pois uma particularidade dos grandes homens, como nos explica o Dr. Ivo Pitanguy, pois “o homem de conhecimento sabe que o gênio solitário está fadado ao esquecimento e para perpetuá-lo deve difundir o seu saber aos mais jovens, mantendo ao mesmo tempo acesa a chama da curiosidade permanente”. Há renovação no confronto diário com os alunos.

Neste ponto, vamos reforçar a figura do extraordinário médico, Osvaldo Cruz, que nasceu em São Luís de Paraitinga, São Paulo, no dia 05 de agosto de 1872 e morreu em Petrópolis, Rio de Janeiro, a 11 de fevereiro de 1917. Estudou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a partir de 1903 e empregou todos os esforços para debelar em três anos, conforme prometera ao governo, a febre amarela. Incompreendido, diante da oposição do povo em serem aplicadas medidas enérgicas de profilaxia, pediu demissão. O presidente Rodrigues Alves recusou-a e deu-lhe apoio integral na execução de sua obra higienista. Em 1908, quando houve uma epidemia de varíola, a vacinação foi aceita como medida necessária. Durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, novamente foi solicitada sua cooperação para o saneamento da zona em que a estrada operava e ele conseguiu uma redução significativa do número de mortes. Escreveu a tese de doutorado, A Água como Veículo dos Micróbios e Relatório sobre a Moléstia Reinante no Porto de Santos.

O médico-escritor gaúcho, Moacyr Scliar, filiado à corrente do realismo mágico que varreu as literaturas latino-americanas e a brasileira nas décadas de 70 e 80, fez sua estreia com História de um Médico em Formação. Sem abandonar o exercício da medicina, publicou vários livros, entre eles Sonhos Tropicais, em que narra a saga de Osvaldo Cruz.

O médico Pedro Nava provocou grande impacto no surto memorialístico do movimento modernista brasileiro com sua obra monumental. A revelação do prosador memorialista foi tardia, a partir de 1972, quando da publicação de seu primeiro volume de memórias, o Baú de Ossos. Escreveu-as com humor, vasta erudição e experiências literárias. Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo das Trevas, Círio Perfeito, Balão Cativo, são ao todo seis volumes de memórias. Pedro Nava preocupou-se com documentos, garantindo ao leitor a veracidade dos relatos. Constituiu um verdadeiro arquivo com questionários dirigidos aos biografados, depoimentos de terceiros e apontamentos que acumulou através do tempo. No seu projeto, Pedro Nava seguiu uma certa cronologia distinguindo etapas de origens, infância, estudos e formação, finalmente o exercício da profissão escolhida, a Medicina, numa abrangência de mais de meio século. Dá início ao longo depoimento sobre o ensino médico da época, percalços e progressos, ao lado de perfis de colegas de estudo e de profissão, de ilustres professore com destaque aos grandes médicos do período. Conforme Beira-Mar, o ingresso do memorialista na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, em 1923, foi por vocação e exemplo de família, não obstante seu gosto literário e pendor artístico.

Em Galo das Trevas predomina o relato do exercício da Medicina, primeiro em Minas Gerais- Belo Horizonte e interior, a seguir no oeste paulista e finalmente no Rio de Janeiro. Viveria a experiência da revolução de 1930 em Belo horizonte e de 32 no interior de São Paulo. Deixa-nos um painel da vida médica brasileira em hospitais, prontos-socorros, clínicas e consultórios. História da medicina repassada pelos elogios justos ou merecidos dos grandes médicos das 3 ou 4 primeiras décadas deste século e pelas críticas severas aos maus colegas de profissão. Em suma, as memórias de Pedro Nava são um vasto e minucioso panorama de uma época vivida, sentida, investigada, poética e criticamente.

Lembrei-me de dois personagens médicos. Primeiramente, o Dr. João Semana do singelo livro As Pupilas do Senhor Reitor, do romântico português, Júlio Diniz, cuja temática gira em torno da tese segundo a qual a vida simples e natural torna as pessoas alegres e felizes. Júlio Diniz descreve o campo, os tipos humanos, os hábitos e as ideias, com o propósito de uma moralização de costumes pela vida rural e pela influência de um clero convertido ao liberalismo. As personagens são autênticas, são cópias do natural. O Dr. João Semana é o retrato fiel do cirurgião João José da Silveira, que no tempo da estada de Júlio Diniz em Ovar, exercia a profissão médica com grande sucesso naquela região, conforme explica o crítico literário Egaz Moniz.

O outro é o “quase médico”, Cirino, do livro do romântico brasileiro, Visconde de Taunay, Inocência. Inocência é um romance regionalista, onde Taunay descreve os hábitos, costumes e cenários da vida do sertão do sul de Mato Grosso, que ele tão bem conheceu nas viagens e campanhas militares. A história diz respeito a um caso de amor contrariado, tendo como protagonistas uma meiga moça de nome Inocência e um “médico” viajante, o Cirino. Como esquecer a cena, em que ele, jovem, de “presença agradável, olhos negros e bem rasgados, barba e cabelo cortados à escovinha e ar tão inteligente quanto decidido” penetrou no quarto de Inocência doentinha, pálida, de uma beleza deslumbrante, à luz de uma vela de sebo? Cirino, impressionado, receitando-lhe sulfato, quina e folhas de laranjeira?

Fez sucesso o livro Medicina Espiritual- O Poder Essencial da Cura, do cardiologista americano, Herbert Benson e da jornalista, Marg Stark. O livro sintetiza algumas recentes descobertas sobre a relação entre mente e saúde corporal. Evidências científicas mostram como são relevantes as emoções e os pensamentos na prevenção e na cura de inúmeras doenças. A ciência está respaldando as práticas que as pessoas cultivam há milhares de anos, como meditar, fazer ioga, relaxar e rezar para despertar a cura interior. Mostra que fé religiosa é fator de manutenção da saúde.

Esses médicos-escritores compreenderam em plenitude o sentido humanístico da vida como um todo. Cultuaram a fé na ciência, aliaram a racionalidade da medicina à sensibilidade literária. Foram motivados na Medicina e na Literatura pelo amor, pela compaixão e pelo profundo respeito a seu semelhante.