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  • Fonte: Domingos Zamagna

Muitas pessoas ficaram impressionadas quando, no conclave de 2013, imediatamente após a eleição do sucessor do Papa Bento XVI, que acabou escolhendo para si o nome de28 Domingos Zamagna e088a Francisco, o seu vivinho de mesa, ao abraçá-lo, lhe tenha dito: “Não se esqueça dos pobres”. Este vizinho era o Cardeal Cláudio Hummes, OFM, então arcebispo emérito de São Paulo, e que acaba de falecer. Obviamente, à medida em que os escrutinadores liam em voz alta as cédulas, foi-se criando a certeza de que o Cardeal Jorge Bergoglio estava sendo indicado pelos cardeais para ser o Bispo de Roma. É facilmente compreensível que todos estivessem tomados de forte emoção, pois participavam de um ato histórico que, na compreensão da Igreja, se reveste de significado profundamente teologal. Para a Igreja Católica, os eleitores expressavam um desígnio de Deus.

Em assembleias eletivas civis, geralmente no momento do voto decisivo surgem aplausos, gritos, abraços, tapinhas nas costas, tentativas de colar-se à imagem do vencedor para aparecer na mídia, haverá até quem deposite um bilhetinho no bolso do paletó do candidato, quiçá com algum pedido particular, para que o novo poderoso não se esqueça dele e seu partido na hora da distribuição das boquinhas e bocões.

Mas o ritual do conclave inibe qualquer tipo de ato de vaidade pessoal e demonstração de força. Os que ali se encontram sabem que estão elegendo alguém para um serviço, uma diaconia, uma entrega da vida por uma causa de suprema grandeza.

É quando se recordam da origem de tudo, da figura de Jesus e seus apóstolos, que vieram para servir e não para serem servidos. E que o Mestre, oferecendo-se para a salvação de todos, fez opção pelos mais necessitados: os pecadores, os órfãos, os doentes, os trabalhadores, as viúvas, os idosos, os migrantes, as crianças, os sem comida, sem casa, sem terra, sem prestígio... tudo o que a Bíblia coloca sob o nome de “pobre” (cf Dt 10,18; Zc 7,9-10; Sl 146 e muitos paralelos).

A inspiração do Cardeal Hummes vem do Novo Testamento, de nada menos que a Carta aos Gálatas, uma carta do apóstolo Paulo, de autoria jamais contestada. Escrita em Corinto, no inverno de 57-58, é portanto um texto de maturidade do apóstolo. Apresenta o Evangelho pregado aos gentios (Gl 2,2) e o define como a união com a vida de Jesus Cristo para a formação do Homem Novo, realidade coletiva do novo povo no qual não existe mais a discriminação que vem da raça, do gênero, da cultura, da classe social. O Evangelho é o anúncio da vida na liberdade: foi para a liberdade que Cristo nos resgatou.

Havia uma ilusão universal de liberdade. No caso dos gálatas, essa ilusão se apoiava na observância da Lei, que não passava de submissão à escravidão (Gl 4,24-25). Todos deveriam se submeter às classes sociais privilegiadas, ao conjunto das prestações religiosas, morais, jurídicas, políticas, sociais, econômicas. A religião exigia até mesmo que fosse bajulado o sistema que os oprimia. Tratava-se de um verdadeiro sistema, ora chamado de carne, ora de homem velho, ou ainda de caminho da morte, e mesmo de judaizantes. Contra tudo isso Paulo apresenta não mais o de sempre, o repetitivo, a tolerância e o prolongamento de um mundo mau, mas sim uma pregação voltada para “o novo”, a nova criatura, o Israel de Deus (Gl 3,28;6,12.16). Um modelo alternativo de fraternidade, mediante uma abertura para com o universo dos gentios, sob o impulso não mais da Lei, mas do Espírito, cujos frutos enumera em Gl 5,22-23.

No capítulo 2 da carta Paulo relata a assembleia (o primeiro concílio) de Jerusalém, também mencionada em At 15. Dentre as decisões, a escola de Pedro se destinará mais aos Judeus, e a escola e Paulo se dirigirá mais aos gentios. E no final da reunião, de mãos dadas, em sinal de união, assumiram um compromisso fundamental: lembrar-se dos pobres (2,10).

Lembrar-se dos pobres, portanto, não significa organizar distribuição de marmitas, cobertores, cestas básicas. Isto sempre deverá ser feito, sem dúvida, quando for necessário. Mas a “lembrança dos pobres” reflete um engajamento muito maior, uma postura de firme seguimento do Evangelho de Jesus Cristo, que não compactuou com a exploração, que propôs um modelo de vida baseado na solidariedade, na compaixão, na partilha e não na competição e no acúmulo.

O gesto do Cardeal Cláudio Hummes se une à mais genuína tradição da Igreja, foi um eco vibrante, profundamente evangélico, do Concilio de Jerusalém naquele conclave de nove anos atrás.

É o que o Papa Francisco vem realizando, carreando todas as suas energias para que haja um mundo novo, sem os sestros e estigmas do autoritarismo, do clericalismo, da dominação de classes. Um mundo compromissado com o respeito ao meio ambiente, aos direitos humanos, um mundo de prosperidade, justiça, amor e paz.