Ela tem permitido um sem-número de projetos os mais importantes e da maior dignidade para nosso desenvolvimento
Miguel Reale, nosso saudoso confrade na Academia Paulista de Letras, em suas aulas na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, costumava dizer que civilização é sinônimo de cultura.
Toynbee, em seu “Um estudo da História”, dividiu as civilizações em face de dois elementos que as distinguiriam, a saber: cultura, de um lado; e as grandes religiões, de outro. Na Academia Brasileira de Filosofia, a acadêmica Maria Beltrão, antropóloga respeitada em todo o mundo, descobriu, no Nordeste brasileiro, pinturas rupestres mais antigas que as da França e da Espanha, estudando as civilizações à luz da cultura, que sinalizava seu progresso.
A Lei Rouanet, quando idealizada pelo ilustre diplomata e membro da Academia Brasileira de Letras, objetivou estimular a cultura com incentivos fiscais, pois se um povo necessita investir em educação, é ela que propicia a necessária evolução para o patamar cultural, e esta potencializa o crescimento de uma nação a um nível civilizacional capaz de distingui-la, no tempo e no espaço.
O governo Bolsonaro, impactado, o que se compreende, por alguns desvios havidos nos recursos destinados a projetos culturais nos governos anteriores — algo que deve ser efetivamente criticado, investigado e punido —, adotou solução aparentemente drástica, no sentido de reduzir os incentivos da Lei Roaunet, que passará a ter outro nome, a um teto bem inferior aos níveis pretéritos.
Entendemos que as más aplicações da lei merecem ser investigadas e punidas. Se desvios houve, não devem, todavia, levar ao extremo de reduzirem-se os incentivos necessários ao crescimento cultural do país.
Aliás, ela é a “prima pobre” da lista de incentivos fiscais dados pelo governo a empresas. Do total, apenas 0,4% é destinado à realização de projetos culturais com seu apoio.
Os inúmeros processos abertos por falta de prestação de contas não podem atingir, a nosso ver, um elemento essencial para o desenvolvimento do país na sua dimensão cultural.
A Lei Rouanet tem permitido a realização de um sem-número de projetos os mais importantes e da maior dignidade para o nosso desenvolvimento cultural. É só entrar-se no site do MinC e se terá ideia de seu montante e sua relevância.
O objetivo da Lei Rouanet é o de oferecer benefícios fiscais a empresários que invistam em projetos culturais em suas comunidades, despertando assim um saudável relacionamento das empresas com as movimentações sociais de sua região. Esse tipo de relacionamento é absolutamente trivial nos Estados Unidos, sem que haja, por lá, leis generosas como as nossas. Naquele país, não há empresário que, ao se estabelecer numa região, não crie vínculos e apoie financeiramente ações benéficas a instituições da sociedade local como clubes, igrejas, bibliotecas, orquestras, hospitais etc. Essa atitude traz, aliás, benefícios inestimáveis à marca de sua empresa, o que impulsiona seu sucesso e, consequentemente, seus lucros. E mais. Um empresário que não adote semelhante costume é considerado um outsider pela sociedade da região. Mas isso é coisa que faz parte do arraigado espírito comunitário presente na raiz da formação daquele país.
A Lei Rouanet pode sim ser aperfeiçoada, agilizada e rigorosa na fiscalização do uso de seus benefícios por empresários culturais, pois se trata de verbas públicas. Mas, em sua essência, ela é correta e de extrema
utilidade para a movimentação cultural do país como demonstram os milhares de bons projetos realizados com seu apoio.
Ives Gandra da Silva Martins é jurista, e Júlio Medaglia é maestro