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  • Fonte: Guido Arturo Palomba

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Antero de Quental recordava com brilhantismo que foi rocha no tempo remoto e tronco ou ramo na incógnita floresta. E também onda que espumou ao quebrar-se na aresta do granito, antiquíssimo inimigo. Depois, rugiu fera no limoso paul, glauco pascigo. E hoje, homem, via a seus pés a escada multiforme a descer em espiral; estendia as mãos no vácuo e interrogava o infinito, a adorar e aspirar unicamente a liberdade.

Essa é a diferença entre tudo o que existe e o homem: o livre-arbítrio, a liberdade.

E, por ser livre, deu à luz o livro, o qual Jorge Luis Borges dizia ser o mais assombroso dos instrumentos que a humanidade criou, pois alarga a alma, a memória e a imaginação. Os demais, para o talentoso escritor, são meras extensões do corpo: o microscópio, ampliação da vista; o telefone, da voz; o arado e a espada, do braço.

A inteligência artificial (IA), por sua vez, é um bem bolado de plágios dos mais diversos autores, cujas fontes não são citadas e, em vez de expandir a mente humana, atrofia por preguiça e comodidade, em respeito à lei do mínimo esforço.

Não é de estranhar o quanto os medíocres lhe dão crédito, esses que não sabem voar e veem pequeninos os pássaros que batem asas lá no alto.

A bem da verdade, a IA é um nome felicíssimo, talvez o melhor de todos os criados pelo marketing: sedutor e fácil de falar em qualquer língua.

Observe-se que a rigor não é nem inteligência nem artificial, mas atrai multidões, qual gado marcado em comportamento de manada, que reage em bloco, todos da mesma forma, sem saber em qual direção estão indo. Compare-se aos mendigos culturais, que catam no lixo alguma coisa e a engolem sem cheirar nem limpar.

Na Medicina a IA serve apenas para auxiliar questões da res corporea (coisas do corpo), por exemplo, verificar comparativamente imagens de tomografia e radiografia, bem como exames laboratoriais, dermatopatológicos e genéticos, procedimentos de cirurgia robótica e outros.

Lembre-se de que essas especialidades são orgânicas e físicas, as quais se relacionam à inteligência concreta dos humanos, aquela que faz contas: 2+2= 4 ou 30 x 4= 120 etc. Ou seja, a IA é uma grande máquina de calcular, diferindo desta (que somente faz contas de aritmética) por ser capaz de elaborar operações complexas.

No entanto, o problema reside no que se refere à rescogitans (coisas da consciência), uma vez que não abstrai, pois a sua essência é a de papagaio estocástico, a reproduzir o que já existe. Por mais que combine isso com aquilo e novas e nunca vistas variações aqui, acolá e para adiante, sempre se alimentará do que já foi inventado, ou seja, não toca a noite do nada onde tudo o que não existe, existe.

Então, para a Psiquiatria, é uma desgraça, um atraso e um perigo, pois o ser humano é res corporea e res cogitans uno eodemque tempore, ou seja, duas substâncias distintas que formam um amálgama uno e indissolúvel enquanto vivo, a ponto de não ter nada psíquico sem algo corpóreo e nada corpóreo sem algo psíquico. Trata-se de um conjunto extraordinário que a natureza tem feito desde a época das moneras ou das rochas de Antero de Quental, até hoje, no embate com o meio ambiente. O resultado desses bilhões de anos de recontro deu o divino conjunto de cerca de quarenta trilhões de células, cada célula com aproximadamente cem trilhões de átomos, tudo na mais perfeita harmonia, em que o cérebro, com a sua inteligência orgânica, sediada nos cerca de 80 bilhões de neurônios, é capaz de dar ao ser humano aquilo que somente ele tem: razão e livre arbítrio.

Por esse motivo o homem não tem essência: o livre-arbítrio o torna dono de seus passos e desejos, de suas escolhas e caminho.

A máquina, por sua vez, seja qual seja — da velha calculadora de fazer contas de aritmética ao mais sofisticado computador capaz de criar as mais avançadas IAs atuais e as que hão de vir —, tem, além de existência, essência, que é a finalidade para qual foi criada. E o homem, por ser o único existente com livre-arbítrio, apto a escolher o seu caminho, fica, por isso, isento de pagar o preço do condicionamento, como pagam todas as outras criaturas vivas ou não na face da Terra.

É obvio que não se pode negar que vivemos no mundo digital, no qual a tecnologia está em quase tudo e redefine os fatos ao nosso redor: nos criptoativos, nas realidades aumentadas, nos robôs e até na arte, com os seus NFTs. Então, o futuro é exatamente agora, mas no centro dessa grande revolução, algo permanece forte e valioso para a Medicina: o contato olho no olho e o escutar o paciente, pois Medicina é arte, ars curandi, e isso é único, individual e autêntico, considerando que cada examinando carrega a sua história, o seu sentimento, a sua percepção, a sua biologia, a sua cultura, a sua religião, as suas crenças e os seus hábitos, algo que o digital jamais poderá sentir, intuir, sensoperceber como o olho no olho consegue fazê--lo. Esse será o diferencial entre o verdadeiro médico e o pechisbeque. O joia falsa é um deslumbrado que se deleita com os avanços do mundo digital e se acha onipotente e orgulhoso, crente de que está a praticar Medicina de ponta, sem perceber que usa a tecnologia como quem tateia sem rumo o futuro.

São Paulo, 29 de agosto de 2025.
Guido Arturo Palomba