Slide
  • Fonte: Geraldo Nunes

“Feliz do homem que apesar da urbanidade não perdeu as raízes e sabe compreender os motivos pelos quais agiam nossos antepassados Me refiro aos bandeirantes, que apesar dos modos e circunstâncias da época em que viveram, ajudaram desbravar e expandir nossas terras Do respeito desperta a lembrança dessa São Paulo de hoje que não é só nossa, é de nossos pais e de nossos avós.
Mas juro! Quando começo a falar de São Paulo me emociono, e às vezes entro por descaminhos.
Me perco um pouco, mas não me perco, tudo é São Paulo, do mendigo ao artista, do trabalhador ao industrial, tudo é São Paulo. É preciso compreendê-la...”
(Duílio Crispim Farina)

Duílio d5e2f

Na Tertúlia da Saudade, as lembranças do médico Duílio Crispim Farina Contei aos confrades e confreiras da nossa querida Academia Cristã de Letras – ACL, durante a tertúlia realizada em 16 de maio de 2023, que em uma das edições do programa São Paulo de Todos os Tempos, levada ao ar pela extinta Rádio Eldorado AM, em um domingo, dia 19 de novembro de 1995, entrevistamos o Dr. Duílio Crispim
Farina, médico por profissão e apaixonado de coração pela cidade de São Paulo. O depoimento radiofônico foi tão bom, que decido transcrevê-lo para um artigo destinado à Revista Já, do Diário Popular, jornal do qual fui colaborador. Passados todos esses anos, ao reencontrar o texto, busquei adaptá-lo à ortografia atual e aqui está.

Duílio Crispim Farina, o segundo a ocupar a cadeira 27 da Academia Cristã de Letras, cujo patrono é São Lucas, inicia seu depoimento falando do tempo de pré-adolescente, quando foi aluno do Ginásio do Estado, considerado o melhor em qualidade de ensino durante sua época de estudante na década de 1930. Quando o entrevistei no estúdio da emissora, nem sequer sonhava um dia substituí-lo na titularidade da cadeira 27 de nossa academia, após eleição promovida pelo sodalício, cuja escolha me deixou e me deixa, profundamente, honrado.

Desde o início, nosso entrevistado buscou dar ênfase ao fato de ser paulistano e explicou: “Existem várias maneiras de se amar São Paulo e uma delas é através da medicina”. Nascido em 9 de dezembro de 1921, decidiu ser médico motivado em parte pela própria cidade. Quando criança, morou em uma casa na Rua Frei Caneca de onde via o movimento das pessoas que entravam e saiam do prédio da Maternidade São Paulo. Outra razão que o inspirou para o estudo da medicina foi o próprio pai, que lamentava o fato de não ter concluído a faculdade de ciências médicas, embora tivesse iniciado seus estudos no Rio de Janeiro, época em que ainda não havia em São Paulo os cursos de medicina.

Conclui-se deste depoimento que o pai do Dr. Duílio foi estudante de medicina antes de 1913, ano em que se iniciaram os cursos de ciências médicas em São Paulo, visto que a Faculdade de Medicina de Cirurgia, sob direção pioneira do Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, foi inaugurada em 19 de dezembro de 1912.

Amar São Paulo e a “Casa de Arnaldo” Estudante de medicina, Duílio Crispim Farina, presidiu o Centro Acadêmico Oswaldo Cruz, da Faculdade de Medicina de São Paulo, em 1946, mas sua capacitação para que ingressasse na faculdade e se tornasse depois um grande médico, veio principalmente do que aprendeu como aluno do Ginásio do Estado que, nos disse ele, era gratuito e dificílimo de entrar. “Fazia-se um concurso de admissão e os jovens estudantes, ainda meninos imaturos, precisavam ter os ânimos preparados pela família no sentido de que, dali para a frente, a vida seria de muitos estudos e de poucos passeios e brincadeiras”, nos explicou na ocasião.

Dessa experiência, o Dr. Duílio passou aos ouvintes uma receita de vida que recebeu de seus pais "Comporte-se sempre de maneira elegante diante de todas as pessoas”.

Depois para descontrair a conversa emendou sua própria receita. “Agora já sou idoso e ao envelhecer percebi que quando nos tornamos velhos, precisamos ser ainda mais elegantes e, não obstante, mais perfumados, para assim continuar sendo digno dos convites que recebemos para os eventos da medicina e das letras. A verdade, é que conforme passam os anos, vamos perdendo a graça". Segundo ele, a melhor receita para todo médico é: "Amar São Paulo e a Casa de Arnaldo", nome ao qual chamava a Faculdade de Medicina.

Depois de formado buscou especialização em ginecologia, obstetrícia e psicologia médica feminina. Trabalhou na Maternidade São Paulo durante 35 anos. Sobre a instituição contou a seguinte história: “O médico Braulio Gomes (1854-1903) ao circular pelo centro de São Paulo presenciou uma senhora prestes a dar luz. O médico a socorreu em plena rua e depois a levou junto com a criança recém-nascida para sua própria casa, porque não encontrou uma instituição que a acolhesse.” Deste acontecimento partiu a iniciativa de Braulio Gomes de criar uma maternidade que servisse à população de forma gratuita. Surgia assim, a Maternidade São Paulo, em 1894, instituição beneficente que funcionou durante 109 anos, ou seja, até 2003. Um cerca de 16 mil partos a cada ano. Ali nasceram Ayrton Senna, Amyr Klink, Paulo Maluf,

William Bonner, Susana Vieira, Nelson Motta, entre outros milhares de paulistanos.

Sobre a profissão de médico teceu elogios, mas lamentou o fato de não ter conhecido pessoalmente, o professor-doutor Arnaldo Vieira de Carvalho, fundador da Faculdade de Medicina, surgida no mesmo prédio onde funciona até hoje, na antiga Avenida Municipal, hoje Avenida Dr. Arnaldo. “Me sinto honrado em poder falar ao grande público da importância para São Paulo a presença do Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho.

Praticamente sozinho estruturou a Faculdade de Medicina, tendo buscado junto ao meio médico, a experiência do que havia de melhor em termos de professorado, até mesmo mestres do exterior vieram dar aulas em São Paulo, como por exemplo, o médico de Turim, Alfonso Bovero, professor de Anatomia. Entre os brasileiros, Oscar Freire foi o primeiro professor de Medicina Legal da Faculdade e Raimundo Nina

Rodrigues (1862-1906) legista e higienista, famoso no Rio de Janeiro, colaborou com os colegas paulistanos nos primeiros anos de existência da Faculdade de Medicina.

Fatos pitorescos de São Paulo Sobre a cidade São Paulo, o Dr. Duílio lembrou-nos de fazer parte da Academia Paulista de História, Academia Paulista de Letras e Academia Cristã de Letras. Disse que nasceu em São Paulo, pela "mercê de Deus”, menção utilizada pelo Regente Feijó quando se referia à terra natal. Citou a casa simples onde nasceu, situada na Ladeira do Porto Geral: “Próxima, com certeza, da antiga moradia de Tibiriçá e do Pátio do Colégio” A casa em que morou, pertenceu antes a Antônio Maria Quartim, primeiro diretor do Jardim Botânico, cujo nome foi modificado para Jardim da Luz. Este lugar se constitui no primeiro parque público da capital paulista, inaugurado em 1825.

O panorama da Ladeira Porto Geral dos seus tempos de menino era parecido com o atual, repleto de comerciantes, visto que até o final do século 19, existiu um porto de areia às margens do Tamanduateí que antes de ser retificado, ocupava as várzeas por onde hoje passa a Rua 25 de Março. Ressaltou que ali ancoravam embarcações que traziam as mercadorias importadas provenientes de Santos, cujo embarque após a íngreme subida pela Calçada do Lorena, era feito próximo das nascentes deste rio situadas, possivelmente, na área da primitiva Santo André da Borda do Campo, de João Ramalho e Bartira.

Um dos passeios do doutor Duílio quando menino era ir à casa do avô paterno, na Rua Direita, para ouvir dele histórias como as da Igreja do Rosário dos Homens Pretos, localizada onde hoje se encontra a Praça Antônio Prado, visto que sua demolição se deu em 1904. Ali velavam-se os cadáveres a serem sepultados à noite pelos escravos.

Contava seu avô, que nesta igreja havia uma imagem de Santo Elesbão, um santo negro, de origem etíope que foi rei em seu país e considerado no Brasil, protetor dos negros escravizados.

Após a abolição este santo perdeu fama entre os fiéis e, com a retirada igreja, transferida para o atual Largo do Paissandu, sobraram poucos exemplares da imagem deste santo, embora ele, Duílio, mantivesse em sua casa, uma estatueta em miniatura de Santo Elesbão, herança deixada pelo seu avô.

Pesquisador emérito e sempre atento aos assuntos da história, nosso entrevistado contou que fez questão de estudar a origem do sobrenome da família Farina, segundo ele, de origem portuguesa: "Farina vem do latim e significa farinha", e acrescentou que são muitos os sobrenomes portugueses. Para satisfazer nossa curiosidade explicou: “Nunes, é também de Portugal e o primeiro ramo dos Nunes, surgiu por volta de 1220, e de lá para cá, todas as derivações partiram deste mesmo ramo, até mesmo os Nuñez espanhóis" e acrescentou que no Brasil os Nunes se esparramaram e hoje fazem parte de um contingente tão grande quanto outros sobrenomes de origens lusitanas como os das famílias Santos, Silva e Oliveira.

A família deste autor é de Minas Gerais, mas há Nunes em todas as partes do país. Em Minas Gerais e em São Paulo encontram-se os Nunes Vianna, Nunes de Almeida e Nunes da Silva, porém todos eles vieram do mesmo ramo português. A mãe do Dr.Duílio tinha Nunes no sobrenome, tendo ela nascido em 1903, nas proximidades da Avenida Paulista que ele preferiu no programa chamar pelo antigo nome, Morro do Caaguaçu, utilizado até o surgimento, em 1891, do projeto imobiliário concebido pelo uruguaio Joaquim Eugênio de Lima e seus dois sócios, José Borges de Figueiredo e João Augusto Garcia.

Despedidas e mais lembranças Quase ao final da nossa entrevista, realizada em 1995, o Dr. Duílio Crispim Farina fez questão de enfatizar a importância da vida. Disse ele que o ser humano se diferencia dos demais seres vivos pela inteligência, memória e principalmente pela sensibilidade. “Me emociono ao falar do Ginásio do Estado, por causa da saudade alegre de um tempo de juventude que não volta mais”. Na ocasião em que o entrevistamos, o Ginásio do Estado ainda existia, não mais com este mesmo nome e sem o brilho de outras épocas. Sua sede ficava no Parque Dom Pedro II.

Em 16 de setembro de 1994, antigos ex-alunos se reuniram para celebrar os cem anos daquela instituição. Foram colegas de Duílio Crispim Farina naquela instituição os juristas José Cretella Júnior e Hélio Bicudo. Na oportunidade do encontro lembraram nomes de antigos professores, entre os quais José Freitas Valle, o grande mecenas da Semana de Arte Moderna de 1922, proprietário da Villa Kyrial, residência que reunia os grandes nomes da cultura paulista e brasileira de outros tempos. O primeiro prédio do Ginásio do Estado funcionou na Rua do Carmo. Com o aumento no número de vagas, foi transferido para o prédio da atual Pinacoteca do Estado, na avenida Tiradentes e depois funcionou junto com o Liceu de Artes e Ofícios, na Avenida Cruzeiro do Sul.

Atualmente no Estado de São Paulo existem 5.130 escolas estaduais. Infelizmente nenhuma delas pode ser comparada à magnitude do que foi o Ginásio do Estado em termos de qualidade de ensino. “Ter um filho como estudante daquela instituição era o sonho de toda família da classe média paulistana. Além da capital paulista foram criadas sedes do Ginásio do Estado em Campinas e Ribeirão Preto”, ressaltou o médico.

Apaixonado que sempre foi por São Paulo, quis a graça de Deus brindar o Dr. Duílio Crispim Farina com a despedida dele de nosso convívio, em um 25 de janeiro, data de fundação da cidade. Sua partida se deu em 2003, aos 82 anos.

Em sua missa de sétimo dia, na Igreja Nossa Senhora do Brasil, o poeta Paulo Bomfim fez um pronunciamento em sua homenagem que emocionou a todos.

(Uma cópia da transcrição da crônica em forma de poema nos foi entregue pelo confrade Gabriel Kwak, jornalista e titular da cadeira 21 de nossa querida Academia Cristã de Letras.)

Oração a Duílio Crispim Farina 

(Pronunciada na Igreja de Nossa Senhora do Brasil, por ocasião de sua missa de sétimo dia, em 31 de janeiro de 2003) 

“No dia 25 de janeiro pela manhã, os sinos poderiam soar em homenagem a cidade aniversariante.

À noite esses mesmos sinos deveriam dobrar pela partida do enamorado da alma desta metrópole.

Ninguém amou São Paulo como o Duílio Crispim Farina. Orquestrou o mistério dos bairros, o madrigal das velhas chácaras, a sonata das ruas, a oração dos templos, o noturno dos documentos históricos, o acalanto das lembranças e a sinfonia de sua Pauliceia.

Com o adeus de Duílio, tarjam-se de luto a Casa de Arnaldo, a Academia Paulista de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, a Academia Paulista de História a Associação Paulista de Medicina, a Academia Cristã de Letras e o coração de seus amigos.

Falo por seus filhos, seus netos e seus irmãos, em São Paulo de Piratininga: Pela bandeira que tanto amou e que tremula hoje, lenço de adeus e lança de esperança com 13 listas guerreiras acrescidas do crepe de nossa dor.

Duílio seguiu ao encontro de seus maiores, ou simplesmente se encantou em nossa saudade, transfigurado em nume tutelar da terra dos paulistas!

Parte o condestável que nos leva a espada de seus escritos, o elmo de sua voz, o escudo de sua causa, o lema de seu brasão, o tema de sua vida.”

Paulo Bomfim

*Geraldo Nunes, jornalista e escritor, é titular da cadeira 27 da Academia Cristã de Letras