Raquel Naveira -
O dicionário é livro fantástico.Buscamos nele o sentido da palavra “construir” e encontramos os seguintes verbetes: “dar estrutura”, “fabricar”, “organizar”, “arquitetar”, “conceber”, “criar”, “traçar segundo princípios geométricos”, “dispor as palavras da oração segundo a sintaxe”. Este último remeteu-me à música “Construção”, de Chico Buarque, o pedreiro colocando “tijolo por tijolo num desenho mágico”, esfacelando-se no solo como “um pacote flácido”. O pedreiro/poeta construindo duramente o seu poema de denúncia social.
Assistimos a um vídeo emocionante: a construção, desde a pedra fundamental até a floresta de lápis luminosos projetada pelo arquiteto Otávio Loureiro, de nossa Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Como é lindo ver as paredes se erguendo, os operários trabalhando, os ferros se retorcendo, os espaços se formando. E nossos amigos e colegas acadêmicos acompanhando as obras nos canteiros, com sorrisos no rosto, a realização positiva de quem edifica. O professor Reginaldo Araújo com sua coragem, otimismo e perseverança passará para a História como o presidente construtor dessa Casa de Letras em solo de cerrado pantaneiro.
A nossa Academia Sul-Mato-Grossense nasceu há quarenta e cinco anos de um sonho de seus fundadores: Ulisses Serra, Germano Barros de Souza e José Couto Vieira Pontes. Tudo começou com o impacto estético e o sucesso de um livro de contos marcante para nossa literatura: o Camalotes e Guavirais, de Ulisses Serra. Vou até a estante e retiro o meu exemplar adquirido naquela noite inesquecível de 30 de novembro de 1971, no Hotel Campo Grande. Eu, uma menina de 14 anos, já totalmente convencida do meu destino de poeta. Releio a dedicatória: “À Raquel Carvalho, garota de inteligência e charme, neta dileta de um velho amigo de minha adolescência, o Carvalhinho, estes pedaços de guavirais dos nossos imensos chapadões e de camalotes de nossos belíssimos pantanais.” (Detalhe: “charme” sublinhado). A casa de Ulisses Serra foi, certamente, o primeiro abrigo onde bateu o coração de nossa Academia.
O primeiro professor que nos ofereceu uma casa foi o também jornalista e empresário de comunicação, José Barbosa Rodrigues. A sala de reuniões do jornal Correio do Estado era o ponto de encontro, o porto seguro, o meio de expressão das produções dos acadêmicos através do Suplemento Cultural publicado há quatro décadas ininterruptamente, aos sábados. Como esquecer a figura séria do professor Barbosa Rodrigues dirigindo as conversas, os garçons que enchiam as xícaras de louça branca com o café fumegante saído dos bules de prata? Sim, pois jornalistas e intelectuais são movidos a café, lembrava ele.
Depois, o professor Luís Alexandre de Oliveira, diretor do Colégio Oswaldo Cruz, em testamento, deixou-nos sua casa na rua Rui Barbosa, casa onde viveu sua honrada velhice de homem solitário, entre livros e lembranças. Quando o encontrei, certa vez, ele, um mulato alto, de cabeça grande, quase cego como o poeta argentino Jorge Luís Borges, radiografou minha alma perguntando: “_ Você é a Naveira? Naveira de Corumbá, do Casario do Porto, da loja de secos e molhados Congro&Naveira?” Era eu sim, a que se tornou Naveira e navegou pelo rio Paraguai.
Apaixonada também pelo rio Paraguai e pela fidalguia dos corumbaenses era a professora Inah Machado Metello. Aquela que, com tanta confiança, nos presenteou com um belo terreno na rua 14 de julho, altos do Bairro São Francisco, onde foi construída agora pelo Governo do Estado a nossa Academia. O terreno foi resgatado e legalizado pelo Dr. Rêmulo Leteriello e comissão. Como ficaria feliz Dona Inah vendo o seu projeto concretizado. Ela era excelente cronista. Escreveu sobre a Casa Cavassa de Corumbá, pois era sobrinha de Mariano Cavassa. Contou como os Cavassa, por se recusarem a comparecer a um baile promovido pelo general paraguaio Barrios, durante a Guerra do Paraguai, foram parar num campo de concentração em Assunção. Voltaram para Corumbá, já retomada pelos oficiais brasileiros, como refugiados, num navio de imigrantes italianos, sofrendo muitas humilhações. O refúgio, drama candente, é questão antiga da humanidade.
Tudo o que nós, seres desejantes mas também limitados e contingentes, nesses rincões do oeste, construímos, concebemos, estruturamos: livros, prédios, projetos, atividades culturais, estudos, viagens, aventuras, buscas existenciais, tudo está entranhado no cimento e na argamassa de nossa Academia. Lembramos o verso de Fernando Pessoa: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.
Esperamos que a partir desse esforço transformado em arena e palco, possamos ter momentos de convivência, de memória, de compartilhamento fraterno com a sociedade através do acervo de uma biblioteca viva e dinâmica; de um auditório que ofereça palestras e seminários; que receba convidados ilustres e gente do povo para acompanhar e refletir de perto as situações do passado e da modernidade, sempre sustentados pela máxima de Machado de Assis: “A Literatura é ideal que eleva, honra e consola.”
Que nesse 25 de agosto de 2017 se abram finalmente as portas de nossa Academia Sul-Mato-Grossense de Letras. Que vejam lá dentro pessoas livres e plenas de amor, verdadeiros alquimistas, eruditos que leiam livros, mas, sobretudo, que leiam o mundo. Que possamos confessar como Marguerite Duras: “Caminhas em direção à solidão. Eu não, eu tenho os livros.”