Por Maria Cecília Naclério Homem² - (Revista do Historiador 10/04/2017)
Postal da Fazenda Morro Azul
“Passarinhos
Na casa que ainda espera o Imperador
As antenas palmeiras escutam Buenos Aires
Pelo telefone sem fios
Pedaços de céu nos campos
Ladrilhos no céu
O ar sem veneno
O fazendeiro na rede
E a Torre Eiffel noturna e sideral”
Oswald de Andrade: Pau Brasil, poesia, 1925
Situada no Município de Iracemápolis, SP, podemos dizer que a Fazenda Morro Azul - morro que, ao longe, é verdadeiramente azul - no que se refere à sua concepção espaci-al, tanto com respeito à sua função agrícola quanto de moradia, apresenta elementos da tradição e das vanguardas paulistas, quer agrárias quer culturais. A casa sede constitui uma das mais requintadas e luxuosas da região Oeste do estado de São Paulo, cuja pros-peridade começou em finais do século XVIII, graças à produção do açúcar, seguida pela do café, em 1840, depois, da laranja, de grãos e, novamente, em 1970, do açúcar e do café.
.A história da Fazenda Morro Azul se inicia há exatos duzentos anos, quando D. João VI outorgou a sesmaria do mesmo nome, a 13 de janeiro de 1817, a Joaquim Galvão de França, José Galvão de França e Manoel de Barros Ferraz³. No recenseamento de 1822, realizado em Constituição, atual Piracicaba, o comerciante e miliciano Manoel Rodrigues Jordão, figura como seu proprietário, onde dispunha de 64 escravos.
Além de prestígio político, o Brigadeiro Jordão era senhor de muitas terras. Deixou seu nome ligado à Estância de Campos do Jordão onde também possuía diversas fazendas. Foi na sua Fazenda Palmeiras, no bairro do Ipiranga, que ocorreu a Proclamação da Independência, no dia 7 de setembro de 1822, episódio no qual figura ao lado de D. Pedro, no famoso quadro alusivo àquela, realizado pelo pintor Pedro Américo4 . No sobrado onde residia na capital paulista, o Brigadeiro e seu sobrinho Antônio da Silva Prado, futuro Barão de Iguape, haviam hospedado o príncipe D. Pedro quando de sua vinda a São Paulo, em agosto daquele ano.
O Brigadeiro Jordão faleceu nessa capital, em 1827. Silvério Rodrigues Jordão (1826–1882), seu último filho, herdou parte da Fazenda Morro Azul. Casou-se em São Paulo em 1850, com Maria Benedita Cananea, com quem teve quinze filhos. O palacete foi erguido posteriormente pelo mesmo, em homenagem à sua esposa, cuja construção ter-minou em 1877.
Fachada principal
Tanto a arquitetura quanto o programa das necessidades do casarão, apresentam uma série de inovações, embora persistam alguns elementos das casas rurais do período colo-nial. Em estilo eclético, predomina o neoclássico de gosto fluminense, o qual teria parale-lo com as fazendas mais luxuosas e anteriores do Vale do Paraíba.
Trata-se de uma construção em tijolos, com materiais importados: ferro, pinho-de-Riga, mármores, etc. ostentando na fachada, azulejos provenientes de Portugal, Holanda e da Inglaterra, além de outros produtos pré-fabricados: balaústres, portas, bandeiras, vidros, torneiras, lavatórios, sifões, etc. Nas edículas, o que havia de mais moderno: W.C. e ba-nheiras de mármore, água encanada e corrente nas pias e lavatórios providos de torneiras douradas.
Sala de visitas
A casa possui planta retangular e mede 1200 m2.
É assobradada e sua implantação fica em desnível, aproveitando-se da topografia irregular, tradição herdada de Portugal, que permitia o porão no subsolo da parte fronteira, e a moradia no térreo, dito andar nobre. O porão, independente, era utilizado como pousada pelos tropeiros.
Na zona social, uma grande sala de visitas junto à entrada, mas persistem a capela, à direita, e escritório ou dormitório de hóspede, à esquerda, conforme a tradição rural. Desaparecem as alcovas, substituídas por uma sucessão de dormitórios, quartos de banhos e banheiro, todos do-tados de lavatórios.
Sala de jantar
Na sala de visitas, mobiliada com móveis de palhinha, sobressai atualmente a foto de D. Pedro II com sua família, datada de 1887. O Imperador visitou a Fazenda por duas vezes, em 1876 e em 1886, quando de passagem para Poços de Caldas. Numa dessas ocasiões, teria ofertado aos proprietários, mudas das palmeiras imperiais que ora emoldu-ram o palacete. O renque de palmeiras que margeia a avenida principal, foi plantado pelo Marechal Rondon, que aí esteve em 1920.
O Imperador e a sua família
Os terreiros não ficavam na frente da residência, mas atrás, enquanto a maioria das fa-zendas escravistas os colocava na posição fronteira para o melhor controle da mão de obra. Foram substituídos por jardins que se estenderam até o pátio de trás, voltado para uma gruta de pedra. São atribuídos ao biólogo belga Arsène Puttemans (1873-1937), professor da Escola Politécnica de São Paulo (1903-1910) 5. Datam da época em que a fazenda foi adquirida e reformada por Luís Bueno de Miranda, em 1911.
Nos fundos, preservaram-se os dois pavilhões de banhos, o “do Imperador” e da Impera-triz, D. Tereza Cristina, que eram dotados de torneiras de ouro e servidos por água mine-ral encanada, proveniente das nascentes do Morro Azul.
Conjunto de termas
Dois anos após o falecimento de Silvério Rodrigues Jordão, os herdeiros passaram por dificuldades financeiras devido à crise econômica de 1908-1909, de modo que a fazenda acabou arrematada em leilão pela Cia. Prado & Chaves, administrada por Paulo Prado.
Dessa forma, o agricultor campineiro Luiz Bueno de Miranda (1868-1948)., ligado à família Prado pelos negócios do café, tornou-se o terceiro proprietário da Fazenda Morro Azul, a qual se tornaria um importante ponto de encontro de intelectuais e diplomatas estrangeiros, e de escritores e artistas ligados ao movimento Modernista.
Vinham de vários pontos do país, da França e da Argentina. Salientam-se: a artista plástica Anita Malfatti, Família Florence; Pedro Luís Pereira de Souza, Pedro Gad, cônsul da Noruega. Barão de Vampré, Ernesto Ramos, 1916-1917 e William J. Sheldon, 1916, os franceses M. de Chabaleyret e M. de Montgolfier, o arquiteto Samuel das Neves, 1918; Carl e Ilse Reibel, os cônsules da Áustria, 1923 e o pioneiro da aviação, Alberto Santos Dumont, entre outros.
A visita do Marechal Rondon
O proprietário da Fazenda Morro Azul era francófilo, como muitos intelectuais brasilei-ros do período. Apaixonado por Sarah Bernhardt, foi quem a recebeu quando ela aqui esteve, em sua segunda temporada, em São Paulo, no Teatro São José, 19096. Astrôno-mo amador, Miranda descobre a constelação da Torre Eiffel Sideral, perfeita e elegante, na noite de 6 a 7 de setembro de 1914. Esse fato emocionou o poeta e escritor franco-suíço, Blaise Cendrars, que veio ao Brasil a convite de seu amigo Paulo Prado, em 1924, bem como o escritor, Adrien Roig, professor da Universidade Paul Valéry de Montpelli-er, França, especialista em Cendrars7.
Luiz casa-se em 1924, com Dona Laura Sá Leite Bueno de Miranda e, quando falece, em 14 de julho de 1948, deixa seus bens para ela. Em 14 de outubro de 1974, faleceu D. Laura, que deixou a Fazenda para os sobrinhos do casal8. Continuam a falar alto os laços com a França e com a família imperial brasileira. Em outubro de 1994, os herdeiros rece-beram a visita de D. Miriam Cendrars, filha do poeta. Em abril de 1996, ela foi visitada por D. João e Dona Stella de Orleans e Bragança e, em agosto de 1997, pelos professo-res participantes do Colóquio Internacional na USP: “A Utupialândia de Blaise Cen-drais”. O encerramento dos festejos referentes ao bicentenário do nascimento de D. Pe-dro I, ocorreu na Fazenda.
Verso do Postal da Fazenda Morro Azul
A fazenda Morro Azul seguiu cantada em prosa e verso. Em 2006, constituiu tema de uma crônica de autoria de Paulo Bomfim, o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, da qual extraímos uma chave-de-ouro para encerrarmos, ainda que temporariamente, esta bela história. Escreveu ele em sua obra Janeiros de Meu São Paulo, 2006:
“...Morro Azul e seu firmamento fazem parte da literatura universal, O achado sideral do fazendeiro paulista Luiz Bueno de Miranda, astrônomo amador, apaixonado, também, pela estrela Sarah Bernardt, brilha sobre a casa-grande, as pal-meiras e o jequitibá de cinco séculos da propriedade fundada pelo Brigadeiro Jordão.
Ali, a história e a lenda se amam em paz.”9
E assim, de poesia em poesia, de canto e encanto, de magia em magia, a Fazenda Morro Azul continua!
[1] A palavra “Imperial” foi acrescentada ao título deste artigo dados os vínculos históricos e culturais que a Fazenda “Morro Azul” manteve com o Império do Brasil e com a pessoa de D.Pedro II.
[2] Bacharel e Licenciada em Letras Neolatinas pela USP, estudou História, História da Arte e da Arquitetura, nas universidades de Madrid e Lisboa, Mestre em História (FFLCH) e Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas (FAU-USP). Entre outros livros, escreveu O Palacete Paulistano 1867-1918, 2ª ed. 2010, Cozinha e Indústria em São Paulo, 2015, Prêmio Jabuti, 2016 .
[4] Livro das Sesmarias, V.IV, p.264, Departamento do Arquivo do Estado, in: Busch, Reynaldo Kunst, História de Limeira, Prefeitura Municipal de Limeira, 1967, p.25
[5] Ribeiro, Maria José. “Notas biográficas do Brigadeiro Manoel Rodrigues Jordão”, coletadas pela socióloga, ex-proprietária da Fazenda Quilombo, Limeira, SP. Paulo Filho, Pedro. Campos do Jordão. Onde Sempre é Estação. São Paulo, Noovha América, 2003, p.8.
[6] cf. cópia do relatório em poder de Fabio Bueno Romeiro Filho, um dos proprietários atuais da Fazenda
[7] : Alexandre Eulálio, A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars, São Paulo, Edusp, 1978, p.52
[8] : Blaise Cendrars é pseudônimo de Frédéric Louis Suser, mutilado da Primeira Guerra Mundial, autor de varias obras escritas em francês. Entre outras línguas, conhecia também português, tendo realizado
uma das traduções de nosso idioma para o francês, do livro A Selva, de autoria do escritor luso Ferreira de Castro.
[9] Bomfim, Paulo, Janeiros de Meu São Paulo, São Paulo: Book Mix, 2006, p.17
BIBLIOGRAFIA
ARGOLLO FERRÃO, André Munhoz. Arquitetura do Café. Campinas, SP, Ed. Uni-camp, São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2004, p.134.;
BENINCASA, Vladimir. Velhas Fazendas; Arquitetura e cotidiano nos campos de Ara-raquara, 1830-1930. São Carlos EDUSFSCar; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003.
BUSCH, Reynaldo Kunst. História de Limeira. Prefeitura Municipal de Limeira, 1967.
EULÁLIO, Alexandre. A Aventura Brasileira de Blaise Cendrars, São Paulo, Edusp, 1978, p.52
LEMOS, Carlos. A.C. Casa Paulista: História das moradias anteriores ao ecletismo trazido pelo café. São Paulo: Edusp, 1999.
RIBEIRO ROIG, Adrien: Blaise Cendrars et Le Brésil: Le Grand Film Brésilien, La Traduction de“A Selva” et “La Tour Eiffel Sidérale”. Paris, Fondation Calouste Gul-benkian, Centre Culturel Portugais, 1988, pp. 273-290.