Helio Begliomini
Como a Bíblia foi Formada?1
Um livro para ser editado desde a sua concepção, confecção dos originais, revisão, editoração, diagramação, revisão ortográfica e impressão leva de seis meses até cinco, oito, dez ou mais anos na dependência do seu tamanho, apresentação, grau de dificuldade na obtenção dos dados de pesquisa e recursos financeiros disponíveis. A Bíblia é sui generis como exemplo, pois levou cerca de mil e quatrocentos anos para ser concluída!
Fato digno de nota é que a Bíblia não é um único livro, mas sim uma coletânea de 73, como se fosse uma verdadeira enciclopédia. Os livros foram escritos por diferentes hagiógrafos, em épocas e contextos histórico-geográficos diversos e condições sócio-econômico-políticas peculiares. Apesar dessa gama multifária de variáveis, o grande denominador comum que a perpassa é a inspiração divina que acompanhou a saga do povo hebreu. Torna-se impressionante observar que apesar das condições heterogêneas que serviram de fulcro para a redação dos livros, eles conservam uma unidade marcante que transcende os fatos isolados neles contidos. Por sua vez, nenhuma passagem bíblica deve ser analisada desprovida de seu contexto histórico e da concatenação de seu elenco completo.
Acredita-se que os primeiros escritos tenham ocorrido anteriormente à época em que o povo hebreu se estabeleceu na Terra Prometida, após o êxodo do Egito. Moisés foi o primeiro codificador das tradições orais e escritas de Israel, no século XIII antes de Cristo (a.C.) Com o decorrer dos séculos, mais e mais escritos foram sendo incorporados sem a preocupação de que fossem catalogados. Os textos eram copiados à mão, grafados com estiletes em tijolos de cerâmica ou rolos da planta egípcia denominada papiro, e, posteriormente, em rolos de couro de carneiro curtido (pergaminho). Esse paciencioso e árduo trabalho era feito pelos copistas. Nesses tempos imemoriais as dificuldades na escrita eram tremendas, não só pelas condições técnicas; pelo parco número de pessoas habilitadas para tal, como também por ser uma arte custosa. Nestas circunstâncias os textos podiam conter pequenos erros, pois a sua redação era feita e refeita, copiada e corrigida, adaptada e incluindo acréscimos posteriores em decorrência de outras versões da mesma história. Torna-se importante salientar que os textos sagrados foram redigidos de acordo com a tradição oral vigente, ou seja, a tradição oral precede a documentação escrita. As narrativas do Gênesis e do Êxodo são exemplos de diferentes versões orais em voga.
No século I da era cristã começaram a surgir os Evangelhos, as cartas de São Paulo, as de São Pedro, dentre outras, que se apresentavam como continuação dos livros sagrados dos judeus. Estes, por não terem aceitado a doutrina de Jesus Cristo, procuraram impedir que se fizesse a aglutinação do que viria a ser chamado de Antigo e Novo Testamentos. Para tal, reuniram-se por volta do ano 100 depois de Cristo (d.C.), no Sínodo de Jâmnia, ao sul da Palestina, a fim normatizar as características dos livros sagrados ou inspirados por Deus. Os critérios foram:
1- O livro sagrado não podia ser escrito fora da terra de Israel.
2- O livro sagrado não podia ser escrito em língua aramaica ou grega, mas somente em hebraico.
3- O livro sagrado não podia ser escrito depois de Esdras (458-428 a.C.).
4- O livro sagrado não podia ser escrito em contradição com a Torá ou Lei de Moisés.
Dessa forma, os judeus da Palestina fecharam o cânon sagrado e não consideraram o cânon não nacionalista dos judeus de Alexandria, no Egito. Nessa cidade havia uma importante comunidade judaica que por falar o grego, traduziram para esse idioma entre os anos de 250 e 100 a.C, os livros sagrados do povo hebreu. Essa era considerada a versão grega conhecida como “Alexandrina” ou dos “Setenta Intérpretes” ou também “Septuaginta”, que, em latim, quer significar “setenta” em alusão aos 70 sábios autores. Esse catálogo considerava sete livros além do cânon de Jâmnia, como sendo inspirados por Deus, a saber: Tobias, Judite, Baruque, Eclesiástico (ou Sirácida), 1o e 2o dos Macabeus, Sabedoria, além de fragmentos de Ester 10,4 – 16,24 e Daniel 3,24 – 90; 13s. Assim, no início da era cristã, havia dois cânones entre os judeus: o da Palestina e o de Alexandria.
Não se pode precisar quais foram os originais do Antigo Testamento. Os copistas, após a conclusão do seu trabalho, enviavam-no aos santuários, sendo a maioria deles destruído pelas intempéries ou pelas guerras frequentes. Em 1947, no Mar Morto, nas grutas de Qumran, foram encontrados textos bíblicos do Antigo Testamento pertencentes provavelmente a uma comunidade de monges essênios judaica. Eles haviam escondido os rolos das escrituras, a fim de que não fossem perdidos por ocasião da destruição de Jerusalém no ano 70 depois de Cristo. Ali também foi encontrado um fragmento do Evangelho de São Marcos, escrito por volta do ano 50 d.C. Outro fragmento do Evangelho de São Mateus, da mesma época, já tinha sido encontrado em outro lugar.
O Novo Testamento também foi redigido em rolos de papiro ou pergaminho, surgindo posteriormente um sistema denominado “códice” e inventado provavelmente pelos cristãos. Caracterizava-se por se recortar o pergaminho em pequenas folhas que eram empilhadas umas sobre as outras e presas por uma das extremidades, assemelhando-se a livros. Isso facilitava sua conservação, manuseio e transporte.
Os livros mais antigos do Antigo Testamento foram escritos em hebraico, surgindo depois em aramaico e, por fim, nos últimos três séculos antes de Cristo, em grego na comunidade judaica de Alexandria no Egito. Da mesma forma, o Novo Testamento foi escrito em grego, e os apóstolos e os evangelistas recorriam-se da versão grega de Alexandria que passou a ser comum entre os cristãos. O Evangelho de São Mateus faz exceção, pois, sua redação foi feita em aramaico e destinava-se aos cristãos de origem judaica.
Durante quase XV séculos a Bíblia foi copiada à mão, sendo o primeiro livro a ser impresso durante 1450 a 1455 após a invenção da imprensa por Gutenberg, em 1442. Ainda hoje se encontram em alguns museus exemplares dessa Bíblia de primevos tempos gutenberguianos.
O catálogo completo da Bíblia cristã (cânon), ou seja, o conjunto de livros considerados realmente inspirados por Deus, foi definido pela primeira vez em 393, no Concílio Regional de Hipona e ratificado por outros Concílios. Pode-se dizer que até a Idade Média havia unanimidade de aceitação dessa catalogação.
Entretanto, na Igreja Católica, a Bíblia contém 73 livros e nas Igrejas protestantes oriundas da Reforma de Martinho Lutero, em 1517 (Figura 1), ex-monge agostiniano, contém 66, ou seja, sete livros a menos, pois, não reúne os livros do cânon Alexandrino, mas sim apenas o de Jâmnia.
Martinho Lutero.
Em suma, o Antigo Testamento passou por um complexo processo de formação antes de chegar à sua forma definitiva. Por sua vez, o Novo Testamento, por ser mais recente, não teve adaptações, conservando-se praticamente inalterada a sua forma inicial de redação.
[1] A Pizza Literária – Décima Terceira Fornada, coletânea da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores Regional do Estado de São Paulo – Sobrames – SP. Expressão e Arte Gráfica, São Paulo, 2014, páginas 27-30.
Referências Bibliográficas:
Bettencourt E T. A formação do catálogo bíblico. Pergunte e Responderemos Ano XLII – no 465 (fevereiro): 50-60, 2001. Hulshof M. Os originais da bíblia. O Lutador, 21 a 31 de dezembro: página 11, 2001. Hulshof M. Divisão da bíblia. O Lutador, 11 a 20 de março: página 11, 2002. Santini AC. Garimpando as escrituras. O Lutador - Belo Horizonte, páginas 5 – 66, 2002.