A legalização do aborto – criticado pela atriz e defendido pelo ex-presidente – é o primeiro elo da imensa cadeia da cultura da morte
Em recente entrevista no programa de Fátima Bernardes, Cássia Kis, uma das maiores atrizes brasileiras, surpreendeu ao falar da alegria de sua fé católica e ao criticar o aborto com a autenticidade de quem passou por uma transformação sofrida, mas profundamente libertadora.
Não faz muito tempo, outra surpresa: Lula. O político astuto, calculista e com notável capacidade de se posicionar na linha dos ventos favoráveis tem provocado perplexidade entre os seus próprios correligionários.
Falando pelos cotovelos, Lula disse que vai resolver os problemas do Brasil abrindo mais estatais. Anunciou que vai acabar com o teto de gastos. Vai criar o Ministério do Índio. Vai detonar a reforma trabalhista e ressuscitar o Imposto Sindical. Disse que policial, para ele, não é gente. Vai criar a moeda que acabará com o dólar. Mas o que mais surpreendeu – pelo menos a mim – foi sua forte, aberta e declarada defesa do aborto. Lula falou de costas para o Brasil, um país que aceita tudo, menos o aborto. Não dá para entender o que está acontecendo com o ex-presidente. Talvez seja uma estratégia de desconstrução de sua candidatura. Sei lá. Mas aproveito o gancho para conversar com você, amigo leitor, a respeito das sucessivas tentativas de forçar a barra para ampliar o aborto no País.
No Brasil, como sempre, grupos favoráveis ao aborto e muito pouco democráticos já começam a ensaiar um roteiro bem conhecido: contornar o Congresso Nacional e levar a questão ao Supremo Tribunal Federal (STF). A rejeição ao aborto no Brasil é fantástica. As pesquisas estão aí. E são inequívocas. A legalização do aborto é uma agressão à sociedade. Mas a ideologia não está nem aí com o sentimento da maioria. Democracia só vale se estiver alinhada com o pensamento único de uma militância autoritária.
A legalização do aborto sempre foi uma prioridade da esquerda. Contra a vontade expressa da sociedade, e em nome da “democracia” e dos direitos reprodutivos, defende a eliminação do primeiro direito humano fundamental: o direito à vida.
No aborto há duas vítimas: o bebê não nascido e o coração desgarrado da mãe.
No tocante ao inegável sofrimento vivido pela gestante, reproduzo um depoimento emblemático. Trata-se da carta de uma mãe que, não obstante a dor provocada pela morte do feto anencéfalo, justificou a sua decisão de levar a gravidez até o fim. Sua carta, publicada no jornal O Globo, foi um contundente recado aos governantes.
“Fui mãe de uma criança com anencefalia e posso afirmar que durante nove meses de gestação convivi com um ser vivo, que se mexia, que reagia aos estímulos externos como qualquer criança no útero. Afirmo, também, que não existe dano à integridade moral e psicológica da mãe. O problema é que estamos vivendo numa sociedade hedonista e queremos extirpar tudo o que nos cause o mínimo incômodo.” (...) “Se estamos autorizando a morte dos que não conseguirão fazer história de vida, cedo ou tarde autorizaremos a antecipação do fim da vida dos que não conseguem se lembrar da sua história, como os portadores do mal de Alzheimer”, escreveu Ana Lúcia dos Santos Alonso Guimarães.
Trata-se de uma carta impressionante e premonitória. A autora se opunha ao aborto anencefálico. A legalização do aborto, estou certo, é o primeiro elo da imensa cadeia da cultura da morte. Após a implantação do aborto descendente (a eliminação do feto), virão inúmeras manifestações do aborto ascendente (supressão da vida do doente) – a eutanásia já está incorporada ao sistema legal de alguns países –, do idoso e, quem sabe, de todos os que constituem as classes passivas e indesejadas da sociedade.
Aprovar a autorização legal para abortar, como bem comentam os filósofos Robert P. George e Christopher Tollefsen, em seu livro Embryo: A defense of Human Life, é dar licença para matar uma certa classe de seres humanos como meio de beneficiar outros. Defender os direitos de um feto é a mesma coisa que defender uma pessoa contra uma injusta discriminação, a discriminação dos que pensam que existem alguns seres humanos que devem ser sacrificados por um bem maior. Aí está exatamente o cerne da questão, que nada tem que ver com princípios religiosos nem com a eventual crença na existência da alma.
Hoje, o que está sendo questionado não é tanto a realidade biológica, inegável, mas uma coisa muito mais séria: o próprio conceito de “humano” ou de “pessoa”. Trata-se, portanto, de uma pergunta de caráter filosófico e jurídico: quando se pode afirmar sobre um embrião ou um feto que é propriamente humano e, portanto, detentor de direitos, a começar pelo direito à vida?
Fala-se, arbitrariamente, de tantos dias, de tantos meses de gravidez... E se chega até a afirmar, como já foi feito entre nós, que só somos seres humanos quando temos autoconsciência. Antes disso, só material descartável ou útil para laboratório. Mas será que um bebê de dois meses ou de dois anos tem “autoconsciência”?
Não se compreende de que modo obteremos uma sociedade mais justa, democrática e digna para seres humanos (os adultos) com a morte de outros (as crianças não nascidas).