Costumeiramente as pessoas me perguntam qual o significado da data que dá nome à Avenida 23 de Maio, uma das mais movimentadas de São Paulo e justamente aquela que leva ao Obelisco do Ibirapuera, onde repousam os heróis que lutaram na Revolução Constitucionalista de 1932.
Tudo aconteceu na esquina da Praça da República com a Rua Barão Itapetininga, onde os moradores do prédio número 70 (mais tarde 298), já estavam na cama quando foram despertados pela gritaria.
Os que levantaram e espiaram pelas cortinas do quarto puderam ver uma multidão enfurecida se aproximando, formada na maioria por jovens.
Eram estudantes, realizando mais uma de tantas manifestações pela democracia, mas desta vez vários deles vinham armados e o alvoroço foi aumentando e o número de pessoas crescendo.
Eis então que se inicia uma investida na direção deste prédio de 6 andares, situado bem na esquina Barão x República. Escadas de madeira são debruçadas sobre a fachada de forma a possibilitar entrada pela janela do imóvel.
A intenção era chegar à sobreloja para atacar a sede da Legião Revolucionária, fundada em 1930, pelos apoiadores de Getúlio Vargas que assumira o comando da nação, prometendo um governo provisório, mas que após quase dois anos matinha as casas legislativas fechadas e decidia tudo através de decretos.
Para auxiliá-lo nas decisões estaduais havia interventores escolhidos por ele exercendo o papel que caberia hoje aos governadores eleitos pelo povo.
Em razão de tudo isso, os estudantes passaram a pedir a implantação de uma Assembleia Nacional Constituinte, mas nada surtia efeito junto ao irredutível e insensível governante.
A Legião Revolucionária, integrada pelos tenentes apoiadores de Getúlio recebeu o nome Partido Popular Paulista - PPP.
Os estudantes consideravam a criação desta sigla uma provocação e tentaram invadir a sede dos apoiadores de Getúlio para depredar os escritórios. Entendiam os jovens que a mesma funcionava como uma espécie de Gestapo, pois ajudava na repressão e ao mesmo tempo servia de base política para os tenentes, na época maioria entre os oficiais com força suficiente para pressionar as decisões dos generais do exército naqueles tempos difíceis.
Passava das 11 da noite e as luzes do "gabinete do ódio" daquela época estavam apagadas. Imaginou-se, portanto, que não haveria ninguém.
Tão logo os primeiros estudantes iniciaram a abordagem tentando ingressar pela janela, na sede da agremiação, ouviu-se uma saraivada de tiros partindo das salas escuras.
De dentro militantes armados fizeram os primeiros disparos para o alto e surpreenderam os manifestantes que saltaram das escadas para o chão em busca de abrigo.
A massa, entretanto, não se dissipou e, ao contrário, com a chegada de mais gente vinda dos comícios em prol da democratização, foram todos se aglomerando e por volta da meia-noite, novos manifestantes chegaram portando armas.
De posse agora de um arsenal, decidiram fazer nova ofensiva ao prédio da guarda getulista dando tiros na direção da janela da sobreloja, enquanto outros voltaram a subir as escadas apoiadas sobre a fachada.
Lá em cima sob um chuveiro de balas, os sitiados improvisaram uma trincheira, empilhando armários e outros móveis rente às janelas.
Mesmo em flagrante inferioridade numérica, os militares favoráveis a Getúlio, tinham em seu favor a visão privilegiada, devido à altura na qual se encontravam.
Um dos primeiros a tentar alcançar o topo foi alvejado, soltou um grito de dor e despencou da escada caindo sobre a calçada e uma bolsa de sangue, logo se formou em volta de seu corpo imóvel.
Os companheiros que o seguiam também foram atingidos, mas conseguiram se afastar cambaleantes para fora da zona de perigo, seguindo-se um cerrado tiroteio.
As 20 famílias que moravam nos apartamentos situados a partir do terceiro andar daquele prédio, apavoradas, ligaram para a polícia.
O plantão da Força Pública prometeu mandar um pelotão urgente, contudo, três horas depois, o tiroteio continuava e nada da polícia dar as caras.
Às quatro da madrugada ouviu-se o som de metralhadoras. Era um contingente do exército que, na ausência dos policiais, agiu para coibir a troca de tiros.
O comandante da operação ordenou o imediato cessar-fogo: “Caso contrário - gritou - iremos impor a ordem nem que para tanto seja preciso disparar contra quem estiver na frente sem distinção de qual lado”.
Em seguida, os soldados formaram um cordão de isolamento e colocaram suas metralhadoras voltadas para a praça, ao mesmo tempo em que um oficial se dirigiu ao prédio da guarda getulista.
Nem precisou de esforço para arrombar a porta, bastou um empurrão, a fechadura já estava arrebentada pelos tiros.
Intimados a deixar o local, os ocupantes da sede da legião tenentista receberam garantias de que seguiriam para um quartel, longe das vistas dos estudantes.
Debaixo de vaias, um a um seguiu por um corredor pelos soldados, ingressando em três veículos estacionados junto ao meio-fio. Nenhum deles exibia ferimentos graves.
Eram quase 5 horas da manhã, o dia ainda não havia clareado e só depois, ao alvorecer, se teve a dimensão exata do episódio de violência ocorrido durante aquela madrugada.
Havia mais de uma dezena de estudantes feridos ainda caídos ao chão aguardando o transporte em padiolas para a Santa Casa.
O número de vítimas, incluindo os que morreriam dias depois nos leitos hospitalares chegaria a 13, mas um número ainda maior de mortos foi esquecido pela historiografia e assim, condenado ao eterno anonimato.
Ficaram para a eternidade apenas os nomes de Euclides Miragaia, Antônio Américo Camargo Andrade e Mário Martins de Almeida, recolhidos sem vida e do palco das manifestações conduzidos ao necrotério.
Uma quarta vítima, o adolescente Dráusio Marcondes de Souza, de apenas 14 anos, morreria menos de uma semana depois pelas complicações dos ferimentos a bala que recebeu.
As iniciais dos seus nomes; Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo deram origem à sigla MMDC que marcaria a cruzada iniciada por São Paulo contra a ditadura e em defesa de uma constituição legítima e democrática.
Por isso se torna inadmissível aceitar que pessoas nos dias de hoje, saiam às ruas não para pedir a democracia e sim o retorno de regimes autoritários.
Isto vai contra os princípios do MMDC. Um memorial erguido em homenagem aos heróis defensores de São Paulo por uma constituição, não pode ser afrontado.
Geraldo Nunes, jornalista e escritor, ocupa a cadeira 27 da Academia Cristã de Letras