Interessante a teia de pensamentos e textos que vai se formando entre leitores e escritores. Li o artigo de Vera Lúcia Oliveira, psicanalista e professora radicada em Brasília, no Jornal de Letras/RJ, intitulado “A peste e A Peste de Camus”. Trata-se de uma resenha do romance A Peste, do escritor franco-argelino, Albert Camus (1913-1960). Um dia, na pequena cidade de Óran, aparece um rato morto na escada do consultório do Dr. Bernard Rieux. Era o primeiro sinal da peste, que se alastrou, ceifando vidas, trazendo à tona o melhor e o pior do ser humano: pavor, medo, indiferença, paralisia, fuga, solidariedade, ternura, a resistência através da arte, o amor ao próximo. Rieux é o símbolo do médico que vence o anjo exterminador, o médico da esperança.
Isso me remeteu imediatamente ao ensaio “O Teatro e a Peste”, de Antonin Artaud (1896-1948), o encenador francês, poeta, dramaturgo de aspirações anarquistas, o bruxo, o louco, o esqueleto vivo, o profeta excêntrico. Sentia-se desconectado de suas origens, oprimido por forças malignas e anuladoras. Nesse estado, entre visões de sangue e horror, conta-nos sobre a chegada, no começo de maio de 1720, de um navio a Marselha, recheado dos ratos da peste, um vírus vindo do Oriente. Sob a ação do flagelo, a ordem desmorona. É como se a doença fosse um instrumento direto da materialização de uma entidade, de uma força inteligente a que chamamos de fatalidade.
Vêm a fadiga atroz, o estômago embrulhado, o pulso fraco, a língua grossa, os bubões na virilha e nas axilas, através dos quais o organismo descarrega sua podridão interior. São como estranhezas, mistérios, contradições provocando rupturas e espasmos. Acendem-se fogueiras para queimar os cadáveres. E é aí, segundo Artaud, que o teatro se instala. O teatro leva a atos absurdos. A situação do pestífero é idêntica à do ator penetrado e transformado por seus sentimentos, perseguindo a sua sensibilidade, em meio a um público de mortos e de alienados. A ação do teatro e da peste estão no plano de uma verdadeira epidemia. O ator trágico permanece num círculo puro e fechado. Há semelhança entre a peste que mata sem destruir os órgãos e o teatro que, sem matar, provoca no ânimo dos indivíduos e do povo, profundas alterações. Como a peste, o teatro é um delírio comunicativo. Há no teatro, como na peste, algo de vitorioso e vingativo ao mesmo tempo. Acontece um imenso expurgo. Há um incêndio espontâneo.
Uma liquidação. Assim como a peste, o teatro refaz o elo entre o que é e o que não é. O teatro nos desperta, comove, nos restitui conflitos adormecidos, trava batalhas de símbolos poéticos, signos de forças maduras. Uma verdadeira peça de teatro perturba os sentidos, libera o inconsciente, leva a uma revolta, impõe à coletividade reunida uma atitude heroica e difícil. O teatro é como a peste: revela e exterioriza um fundo de crueldade latente em nós. É o triunfo de forças negras que uma força maior leva à extinção. O teatro existe para vazar abscessos. É uma epidemia salvadora. É uma crise que se resolve pela morte, pela cura ou pela extrema purificação. É a catarse que atingimos, por exemplo, assistindo às tragédias gregas e às tramas de Shakespeare.
Aprofundei-me nesses estudos sobre Artaud, sobre sua atividade intelectual vez mais dependente de ópio para aplacar as dores na cabeça e nos ombros, viajou paraTarahumaras. Era uma tentativa de encontrar respostas para seus tormentos. Ficou Acreditava ser incrível para o teatro o tema da conquista do México pelos espanhóis.Outros Poemas (Campo Grande/MS: UCDB, 2001). “Stella Maia” é a estrela de fogo metálicos, segurando um girassol amarelo. É a estrela das civilizações perdidas doshoje jaz a raça índia. Era ali que os deuses exigiam ofertas de corações humanos come nas luzes na névoa, os navios de asas brancas que se aproximavam como fantasmasseu manto púrpura, passando por cima de toda uma população ameríndia.
Artaud desejava lavar a sua alma. Não creu que isso fosse possível com o legado cristão que recebera: o sangue do Cordeiro. Recorreu então às beberagens dos cactos do deserto mexicano. De volta à França, debilitado, entre eletrochoques e cartas lúcidas e desesperadas ao seu médico, Dr. Frediêre, em terrível sofrimento, foi encontrado morto em seu quarto de hospício. Deixou roteiros, ensaios, peças e uma ópera. E também um material vocal, em que seus gritos batem, cavam, espetam, tremem, em surpreendentes exercícios teatrais.
Veio lá de entre os morros de Aquidauana/MS, o ator que melhor representou Artaud no teatro: Rubens Alves Correia (1931-1996). Rubens foi intérprete magistral. Em 1986, concebeu o monólogo-espetáculo chamado Os Inumeráveis Momentos do Ser, no porão do teatro Ipanema, no Rio de Janeiro. Foi uma montagem marcante que lhe rendeu inúmeros prêmios. Desenvolveu o personagem com toda a alta carga dramática, prevista no teatro da crueldade. Rubens de fato encarnou Artaud. Eram ele e seu duplo. Penetrou no domínio da dor, da sombra, do nada. Gemia e contorcia-se no palco, explodindo angústia. Caminhava pelo misticismo com poesia e fulgor. Esbugalhava os olhos. A boca, como um rasgo na face, tinha ânsia de beijos que não vieram nunca. Rubens amava a terra vermelha de Aquidauana assim como Artaud amava as montanhas do México. Rubens desenhava tempestades com as mãos como se fosse Van Gogh suicidado. Rubens ficava possuído, rodeado de corvos, sufocado por espíritos. Rubens via valor na loucura e dava forma à ameaça que era Artaud. Rubens, ator cheio de compaixão pelo homem e pelo gênio incompreendido, fingiu que era Artaud. Fingidor.
Vera Lúcia, como me fez caminhar em lembranças o seu artigo! O teatro e a peste são benfazejos porque fazem cair as máscaras e põem a descoberto o quanto somos pobres, miseráveis e nus. Nossa sede de teatro só será saciada no Juízo Final.