Não pode existir “invisibilidade cidadã”. O status da cidadania é incompatível com a invisibilidade. Todavia, a Covid19 exibiu a situação de invisibilidade de milhões de brasileiros, aqueles desconsiderados pelas estatísticas oficiais, mas que são seres humanos que sofrem, choram e anseiam por uma vida digna.
O Brasil tão incapaz de adoção de políticas estatais compatíveis com a Quarta Revolução Industrial é o mesmo que desconhece o potencial de um dos serviços públicos mais exitosos e confiáveis de que dispõe. O sistema falível de controle das identidades e de cadastros públicos dispõe de uma rede de mais de quinze bases de dados, todas incompletas. Enquanto isso, o Registro Civil das Pessoas Naturais, anônima e silenciosamente, continua a dispor de um acervo de extrema valia para corrigir tal situação e para alavancar projetos consistentes de nova formatação da sociedade tupiniquim.
Três especialistas no tema apontaram o resultado dessa deficiência, por eles considerado como “três verdades inaceitáveis: 1) Um número significativo de pessoas não consta nos cadastros públicos; 2) Um número significativo de pessoas nem sequer tem documentação adequada; 3)Como resultado, boa parte dos brasileiros não tem nenhuma relação formal com o Estado” (Ronaldo Lemos, Eduardo Mufarej e Cláudio Machado, “Apagão de Identidades”, FSP, 5.4.2020)
Talvez aos três experientes profissionais tenha escapado a percepção de algo que, por ser tão antigo e tão natural, passa de forma despercebida para a sociedade. Em cada distrito, em cada vilarejo ou povoado desta imensa Nação, existe um Registro Civil das Pessoas Naturais, a delegação extrajudicial mais próxima à população e a mais democrática do sistema.
O constituinte de 1988 foi muito inspirado quando escolheu a delegação para a outorga dos antigos cartórios. Hoje, eles são exercidos por profissionais competentes, pois aprovados em severo concurso público de provas e títulos realizado pelo Poder Judiciário. A cujo jugo, nem sempre suave, estão permanentemente submetidos.
A tática de significativa conveniência para o Estado brasileiro é que não há um centavo de dotação pública para que o serviço funcione. O governo deixa de investir na delegação e leva percentual considerável dos emolumentos, que são a remuneração do titular da serventia.
Prática essa que, levada a outros setores essenciais à finalidade do Estado, teriam transformado para melhor a face de um Brasil de tamanhos contrastes.
Não adianta ignorar a obsolescência do sistema cadastral brasileiro e deixar de observar o êxito com que o Registro Civil executa sua missão. A antiquada metodologia de carteiras de identidade de papel não é própria ao mundo digital. O e-título já mostrou sua eficiência. A falta de coordenação dos inúmeros bancos de dados pode ser substituída pela capilaridade das delegações extrajudiciais do registro das pessoas naturais.
Existe um IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, encarregado de coletar todos os dados dos nacionais para nutrir estudos de planejamento e execução de políticas estatais. Ora, o dispendioso recenseamento decenal pode ser – e, na verdade o é – diuturnamente realizado pelos esforçados registradores civis que estão em 13 mil localidades do Brasil.
Saber quantos são os brasileiros, quando e onde nascem, sua cor, tudo é obtenível no acervo do RCPN. Se a alternativa é a identidade única, a concentração de dados num só documento, isso também se mostra viável para uma estrutura que funciona a contento, muito embora seus préstimos não sejam devidamente reconhecidos pelo Estado. Aliás, numa perspectiva que evidencia a cegueira estatal, impõe-se ao registrador civil o ônus de oferecer gratuitamente aquilo que tem inevitável custo. Nada contra a gratuidade para os comprovadamente carentes. Mas esse ônus não pode recair sobre quem foi habilitado por seleção de mérito para exercer uma atividade estatal pela qual responderá em caráter privado. É frontalmente contrário ao princípio da liberdade de iniciativa privada impor gratuidade a préstimo considerado essencial por parte do governo. Este é que deve responder por esse dispêndio. Afinal, o capitalismo cansou de ensinar que não existe almoço grátis.
A identidade digital já funciona em grande parte do Brasil. O Registro Civil das Pessoas Naturais funciona junto às maternidades, a partir do esvaziamento da profissão de parteira. As crianças não escolhem dia e horário para nascer: vêm à luz aos sábados, aos domingos, à noite ou de madrugada. Nenhuma criança brasileira, nos centros urbanos mais adiantados, sai da maternidade sem a certidão do seu assento de nascimento. E sem o seu número de CPF. Por que isso não pode ser ampliado para a vacinação, carteira de saúde, Registro Geral e tudo o mais que deva constar do Documento Único?
Nada impede que essa identidade abrangente seja utilizada de forma digital para obtenção dos serviços públicos e redução da burocracia que sufoca o brasileiro, assim como a mais elevada carga tributária do globo.
A estrutura do IBGE precisa ser deslocada para o RCPN, mediante convênio, o que já é possível à luz da Lei 13.484/2017 e do Provimento 66 do CNJ e os dados essenciais à formulação de políticas estatais estarão disponíveis para o planejamento do governo.
Isso pode ser também estimulado pelo Poder Judiciário, que é detentor da condição de produzir significativo impacto na implementação das políticas públicas. Os tribunais influenciam a definição de alternativas pelo poder político. O Judiciário é o fiscalizador, o controlador, mas também o orientador das delegações extrajudiciais. Nada impede, ao contrário, tudo recomenda, que ele assuma papel assertivo para que os demais Poderes, tão inebriados com eleições e reeleições, coligações e utilização de Fundos Partidário e Eleitoral, produzam normatividade que responda aos crescentes desafios do mundo digitalizado.
O Brasil tem criticado a interferência do Judiciário na política. Mas não pode se omitir quando constata a ineficiência de sistemas imprescindíveis ao aperfeiçoamento da frágil Democracia pátria. Investir no aprimoramento cadastral, na prática efetiva de oferta de serviços públicos hoje tão deficientes, como o controle de vacinações, de matrículas, de vagas nos hospitais, de obtenção de benefícios previdenciários e assistenciais, é algo que reduzirá, paulatinamente, a invisibilidade dos brasileiros que hoje, excluídos das benesses, mas incluídos nas desgraças, merecem adequado tratamento. Por parte dos três Poderes da República, mas também por parte da Universidade, da Academia, da intelectualidade e de todos os brasileiros que possam vir a ser designados sob a abrangente designação de “homens e mulheres de boa vontade”.
As novas gerações agradecem pelo eventual empenho que venha a ser demonstrada no sentido de reduzir os gaps escandalosos que uma das maiores economias mundiais apresenta, em cotejo com os níveis desejáveis de convívio justo e solidário.
_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020, e ocupa a Cadeira nº 8 na Academia Cristã de Letras.