Homenagem ao Patrono Machado de Assis - Cadeira nº 1 na Academia Cristã de Letras.
A cátedra de número um, que ora ocupo, tem como nume tutelar Machado de Assis, o mais completo e expressivo dentre os escritores da língua portuguesa no Brasil.
Sua biografia está cheia de lances surpreendentes, a começar por suas origens modestíssimas, filho que era de um pintor de paredes, o mulato Francisco José e de Maria Leopoldina, precocemente falecida. Criado pela madrinha, Maria Inês, uma doceira doméstica, percorria ele durante a semana o bairro de São Cristovam vendendo paçoca e queijadinha, e, aos domingos, servia de coroinha nas missas da igreja de Lampadosa. Teve aulas de primeiras letras numa escola próxima a sua casa, mas, sem tempo para frequentá-la, tornou-se mestre de si mesmo, empreendendo uma formação autodidática que o acompanhou por toda sua longa existência.
Movido por insaciável curiosidade e dotado de uma inteligência acima do comum, aprendeu francês, ainda na adolescente, com um padeiro vindo de França de quem se tornou amigo. E teve a proteção de D. Maria José Mendonça Barroso, viúva do senador Barroso Pereira, proprietária da Quinta do Livramento, e que o quis como a um filho.Começou sua produção literária aos 16 anos, com o poema “Ela”, publicado no “Jornal de Paula Brito”, do qual viria a ser assíduo colaborador. Na Imprensa Nacional conseguiu, aos 17 anos, emprego de tipógrafo e fez-se amigo de intelectuais famosos, como Gonçalves Dias, Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar, que o orientaram nas leituras e lhe abriram espaços para publicar crônicas e poemas, no “Correio Mercantil” e no “Diário do Rio de Janeiro”, jornais lindíssimos pela elite carioca da época. Foi, assim, fazendo nome, desenvolvendo o gosto pelas letras e chamando sobre si a atenção dos escritores de maior prestígio na Corte.
Profundo observador dos costumes da sociedade, escrevia textos marcados por reflexões originais, das quais já repontava uma capacidade crítica admirável, servida por um estilo sutilmente irônico.
Ao mesmo tempo, obteve um cargo burocrático no Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, no qual fez carreira, chegando a oficial de gabinete do ministro e poeta Pedro Luiz Pereira de Souza (Que infelizmente não é meu parente). Seus primeiros contos, reunidos na coletânea Contos Fluminenses, mais os romances Ressurreição, A mão e a Luva, Helena e Iará Garcia, foram escritos sob a égide da estética romântica, predominante no país na década dos setenta, quando também ganharam notoriedade os romances históricos-indianistas de José´de Alencar, seu grande amigo.
A virada do estilo deu-se aos poucos, sob a influência salutar das obras francesas de Stendhal e Balzac, e inglesas de Dickens, e levou Machado a aderir ao parnasianismo realista, escola está mais conforme com a ótica sócio-psicológica de sua visão do mundo e com as análises do dualismo comportamental de suas personagens, todas elas de certo modo extensões espelhadas do seu próprio temperamento ambíguo, furta-cor e rico de humor: A par disso tudo, burilava o vernáculo com tal poder expressionista e num esforço ático de perfeição tão escandido que,de longe, bateu todo seus contemporâneos na perfeição do uso das palavras. Nisso tudo teve o decisivo apoio de sua esposa, Carolina, uma portuguesa, culta e sensível que com ele dividiu as dificuldades de uma vida modesta materialmente, mas, em compensação, riquíssima de estesia e prestígio.
A obra que marcou a guinada estilística denomino-se “Memórias Póstumas de Braz Cubas”; por ela iniciaria ele sua ascensão ao cenáculo dos imortais. Nessa obra já se percebem nitidamente as afluências daquelas que seriam as marcas registradas de seus textos futuros: a ironia, a ambiguidade, o “chiaroscuro” das almas em conflitos consigo mesmas, a dissimulação de sentimento, as reticências, o penumbrismo do cenário psicológico, o tédio existencial e o nihilismo filosófico. Tudo isso com maior ou menor intensidade se encontra também em “Quincas Borba”, em “Dom Casmurro”, em “Esaú e Jacó” e em “Memorial de Ayres”, os quatro gigantes de sua bibliografia romanesca que, traduzidos em inúmeras línguas, testemunharam perante a “Intelligentzia” internacional a grandeza da literatura brasileira dos fins do século XIX e início do XX. Daí que em 1896, ao colaborar com Lúcio de Mendonça na fundação da Academia Brasileira de Letras, acabou sendo eleito seu primeiro presidente, posto que conservou até sua morte, em 1908.
Augusto Meyer, o mais refinado dos estudiosos da obra machadiana, á qual destinou um livro de análise psicanalítica de fazer inveja a Freud, destacou o fato de nos contos e romances aproveitar-se o autor dos personagens que criava para neles projetar seus próprios demônios, como se tivessem saído de um espelho em que não o rosto mas a alma do escritor exibisse todos os conflitos de sua própria personalidade. Nem é por acaso que seu conto mais antológico, o “Espelho”, apresenta o alferes Jacobina, a brincar o tempo todo com as alternâncias da realidade e do sonho, da bondade e da maldade, da grandeza e da bondade e da maldade, da grandeza e da miséria, do sucesso e do fracasso, da alegria e da dor, numa farândula de contrastes que é sua própria autobiografia psicológica, sempre repassada de angústia e incertezas. Essa empatia entre o autor e suas criaturas tem muito a ver com o humor, que atinge altitudes inexcedíveis nos textos machadianos. E, por paradoxal que pareça, com cada humorista enxerga o mundo através de si mesmo, dessa veia inglesa de avaliar pessoas e acontecimentos tira Machado os melhores efeitos, e a tensão de seus figurantes, no contraponto entre a vida real e o fingimento da invenção literária. Até porque suas histórias não são de ação e sim de sondagem psicanalítica das almas em confronto com si mesmas.
Para encerrar estas poucas e sumárias avaliações de Machado de Assis e sua contribuição para a cultura brasileira, recorro, ainda uma vez, a Augusto Meyer, quando diz que três fatores podem ser considerados fundamentais na visão existencial desse escritor: a negritude, que procurava disfarçar, na sua condição de mulato aristocratizado pelo convívio com a nata da sociedade carioca; a epilepsia, que fez dele um tímido e um inseguro; e o temperamento pessimista e revoltado que buscou no Nihilismo Natscheano a lente ideal para enxergar o mundo e julgar os homens. Como gênio se caracteriza pela capacidade de transformar dores em sublimações do belo, eis a razão pela qual este sofrido filho de um pintor de paredes acabou nos píncaros da consagração pública e da imortalidade de histórica, mercê dos poemas, das crônicas, das peças teatrais, dos contos e, principalmente, dos romances, com que nos herdou.