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7 Raquel Naveira 81a2eA ideia desta palestra surgiu quando abri o pequeno livro Poesia de Abílio de Barros como se fosse um presente envolto em laços delicados. Na capa, um desenho de traços rápidos, perfil de Abílio feito pelo artista plástico Jorapimo, durante uma viagem de ambos a Corumbá, que o assinou e lhe entregou com a seguinte dedicatória: “Para o irmão do ‘cabeludinho’ ”, no caso, Manoel de Barros. Sim, Abílio de Barros, o pecuarista e produtor rural; advogado; formado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; professor universitário; escritor dono de uma prosa clássica, vigorosa e discursiva; o “Guardião do Pantanal” é irmão caçula do poeta Manoel de Barros. Da mesma estirpe , da mesma seiva, do mesmo lugar onde os rios são “cobras de água andando por dentro dos olhos”.

Abílio de Barros nasceu em Corumbá, em 1929, 13 anos mais novo que Manoel. Publicou entre outros livros, “Gente Pantaneira: crônicas de sua história”, um livro clássico, sociológico, dividido em três partes: na primeira, o autor analisa usos e costumes dos habitantes do Pantanal mato-grossense, desde suas origens nas cidades circunvizinhas a Cuiabá, delimitando para seus estudos a região da Nhecolândia que pega a um pedaço do município de Corumbá, limitado pelos rios Paraguai, Negro, Taquari e bordas do planalto de Maracaju e  Rio Verde; na segunda parte, retrata o homem pantaneiro, sua cultura, seu fazer, esclarece, irônico, que o homem pantaneiro constitui a única espécie em extinção nesse santuário ecológico; na terceira parte faz digressões em relação a tópicos ambientalistas. Frisa que “o paraíso não pode estar onde o homem nunca esteve”. Na linguagem cativante de um pantaneiro da gema por várias gerações, o livro transformou-se na principal fonte sobre o Pantanal. Um livro escrito de dentro do Pantanal para fora. Daí sua importância, sua autenticidade. Abílio conta que os primeiros turistas apareceram nos anos 70, fotografando jacarés, capivaras, onças, garças, tuiuiús e que o homem pantaneiro ficou fora do foco, mas já estava lá há mais de 100 anos convivendo com esses animais, botando o boi junto deles e vivendo sem destruir nada. O pantaneiro mereceria, por certo, alguma admiração, apesar de que aos olhos dos ecologistas parecesse um escândalo que pudesse existir uma atividade econômica convivendo com a preservação ambiental. Mas não eram apenas os ecologistas que não viam o pantaneiro. Ninguém sabia dele, o governo o ignorava, apesar de a pecuária pantaneira ter sido no passado, a maior fonte de arrecadação estadual.

O povoamento da Nhecolândia constituiu um fenômeno de ocupação territorial. Não houve luta nem disputa de posse. Nenhum entrevero armado, nenhum tiro, tudo em paz. Nem índios havia nesses lugares. Poucos tiveram consciência que faziam história. Aquilo era o mundo deles, era a vida, era a lida. Gente pacífica, silenciosa, com capacidade aguda de observação, propensos mais a ouvir que falar- uns ruminantes. Mas não faltava ao pantaneiro inteligência, aliada a um jeito manhoso, malicioso de ver o mundo. Humildade, insatisfação mal disfarçada com a pobreza, forte ânsia de grandeza. Eram descendentes de altivos bandeirantes paulistas e dos aventureiros das minas de ouro de Cuiabá, empobrecidas pela exaustão das jazidas. O bandeirante não aceitava a derrota de um retorno empobrecido. Julgavam-se “gente de nome”, “gente metida a grande”, alicerçada em vestígios de distante nobreza. E assim ficaram em Cáceres (Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, militar de confiança real, fundador de Corumbá, ilustre pelas origens e pelas obras), Poconé, em Vila Nossa Senhora do Livramento, a vila dos papa-bananas, sempre lembrada por Abílio. Completam o caráter dessa gente, um sentimento ético-religioso muito forte, quase uma intransigência moral. Mesmo após  a formação de ricas fazendas, não houve vestígio de coronelismo, nem capanagem. O Pantanal sempre foi lugar de ordem, respeito, segurança. Quase comparados aos puritanos calvinistas é assim que Abílio vê e admira sua gente.

Explica Abílio: “Os papa-bananas que foram fundar as fazendas no pantanal de Corumbá, os nhecolandenses. Mais especialmente os Barros, que são Antunes Maciel, que são Arruda, que são Figueiredo, que são Campos, que são Medeiros, Botelho, densamente entrelaçados, o que torna quase impossível o delineamento genealógico.”

Neste trecho Abílio explica a origem da família Barros: “Manoel Wenceslau de Barros era meu avô. No começo do século, mudaria para Cuiabá. Alguns anos depois, D. Augusta, já viúva, com 14 dos seus 15 filhos formaram o rol dos migrantes papa-bananas de Corumbá. Lá estavam Nhonhô Fancho, com mais 14 filhos, genros e noras. Os dois grupos constituíram os Barros da Nhecolândia. Unia-os os mesmos traços de caráter da gente livramentana, além do parentesco e essa coincidência de terem todos nascido ou vivido no mesmo sítio de Cocais. Mais tarde, os corumbaenses fariam distinção entre os dois grupos, chamando Barrões aos descendentes de Francisco Leite de Barros e aos pequenos e franzinos filhos de Manoel Wenceslau de Barros, chamariam Barrinhos”.

Outro traço do caráter do pantaneiro: o humor, sem grosserias ou palavrões, cheio de surpresa, finas respostas, que transparece na sua fantástica capacidade de criar apelidos: Saco de Manga, Bugio do Mal, Peixe Agulha (o magro), Caju Mal Chupado, Fim de Cacho, Pouca Pena (o careca) , Tatu na Faca (o sem pescoço).

Em “Histórias de muito antes- exercícios de ficção e memória”, contos de Abílio, o grande personagem é a infância. Há um clima melancólico nascido da visão da passagem o tempo, da impermanência de tudo, nesses flagrantes da vida corumbaense na década de 40. Aparecem personagens reais como os poetas Lobivar Matos e Manoel de Barros, Apolônio de Carvalho numa breve incursão comunista, os cordões carnavalescos de Corumbá e outras curiosidades.

Abílio lembrou-me de repente a história de Theo, negociante de arte, irmão mais novo de Vincent Van Gogh, que deu a ele todo suporte e apoio financeiro para que se dedicasse exclusivamente à pintura: tintas, telas, viagens, mesada, estúdio. Os irmãos, durante anos, trocaram cartas comoventes onde Theo procurava encorajar o irmão depressivo e Vincent revelava seus pensamentos, sua alma torturada de artista. Certa vez, escreveu a Theo manifestando o desejo de pintar retratos que tivessem vitalidade “associando duas cores complementares, sua mescla e sua oposição, têm-se as misteriosas vibrações de tons análogos”. Como sofreu Theo vendo aquele intelecto superior balançado por emoções perturbadas; o temperamento explosivo e confuso; os ataques de nervos; a ansiedade em alto grau; as alucinações; as hemorragias; o suicídio com arma de fogo! Tudo ficou para sempre impresso no autorretrato de Van Gogh: a barba ruiva e áspera, a boca infeliz, as pálpebras caídas e, ao fundo, um caos azul e cinza de redemoinho turbulento. Que contraste entre o sucesso póstumo e o fracasso e a rejeição que o artista experimentou em vida! Curta vida. Longa arte. Os quadros de Van Gogh estão entre as imagens mais conhecidas da atualidade e valem milhões de dólares. Theo permaneceu fiel até o fim no seu amor fraternal.

Um pouco assim foi Abílio para Manoel: o irmão sempre presente, lúcido na condução das finanças, consultor e amigo dos sobrinhos, porto seguro em meio a tempestades familiares e políticas. Manoel vivia para a poesia, dizia que “estudara Direito por linhas tortas”, que Deus ajeitara nele um dom: “pertencer para uma árvore, escutar o perfume dos rios”. Era alguém que não desejava “cair em sensatez” e que só almejava o “fetiço das palavras”.

Como Theo, marchand, que amava a pintura e apresentou Vincent a artistas como Degas, Pissaro e Lautrec, que lhe ensinaram as técnicas impressionistas, descobrimos, súbito, com a publicação tardia do livreto “Poesia” que Abílio amava a poesia, que desejou um dia, em sua juventude, ser poeta. Que Abílio renunciou à poesia, sufocou dentro de si o desejo de ser poeta,  afinal, a mãe reconhecera em Manoel o poeta e vaticinara: “_ Meu filho, você vai ser poeta! Você vai carregar água na peneira a vida toda.” Manoel, poeta e eterno menino. Abílio, homem sobre o cavalo, as rédeas dos dois destinos nas mãos.

Na apresentação de Poesia, Abílio confessa com simplicidade: “Estes poemas foram escritos pelo adolescente que fui. Nunca os mostrei. Agora, lendo-os de novo, mais de 60 anos passados, senti-me emocionado e esqueci os senões”. E, com coragem, trouxe a lume esses versos de um poeta cedo reprimido, mas jamais esquecido. Em “Cantos de Espera”, poemas datados de 1948, mostra-nos sua musa: Tereza. Tereza... que nome forte, ibérico, medievo, de santa e rainha, de mulher do povo: “A esperada Tereza/ de ausências nutrida/chegou/ Núbil, triste, pura,/ abúlica e minha,/ Como eu quis”. Tereza quase menina, vestida de silêncio, peito esfregado de flores, reconhece nele o poeta: “e poeta que tu és,/ dá-me um pouco de teus sonhos/ para arremate dos meus”. Tereza, “finada mas não defunta”, vê um dia o poeta dizer adeus: “Inclina-te sobre o meu cais,/ acena teu lenço/ Tereza,/ eu vou partir.”

A segunda parte intitula-se “O Náfego descobre o Mar”. Estranha palavra: “náfego”. Parece alteração de “náufrago”. Diz-se do animal aleijado que coxeia. O poeta é náfego, centauro manco acostumado ao mato, que, de repente, dá com o mar: “minha rua acaba no mar,/ e o mar nos limita.” Esse poeta que “veio de longe... do mar amar”, indaga em vão às ondas e o mar não responde.

Em “Esse Triste” as palavras “triste” e “tristeza” se repetem: “Tristeza quase saudade/ daquele que eu seria/ se triste hoje não fosse/ esse triste que sou.” Triste, amargo, melancólico, com desejo de morrer vendo a “chuva triste e sem sentido” caindo lá fora. Triste e belo. Em “O Experiente”, o adolescente, o moço Abílio já se sente “experiente”: “Esperanças? Já esperei. / Hoje sou Experiente,/ trago comigo a marca/ de uma idade que não tive,”.  Em  “O Mágico”, o poeta se esconde sob capas, disfarces, brinca com palavras, utiliza-as num passe de mágica, ultrapassa o simbólico: “É preciso amigo, dionisíaco,/ incendiar as palavras,/ segredar em palavras,/ afogar toda procura.”

O livreto finaliza com um ensaio intitulado “Reflexões sobre a poesia do ponto de vista da razão” e para a razão “a poesia é um distúrbio de caráter lírico-afetivo, vizinho da loucura”. A percepção estética ou poética é uma emoção e não busca da razão. Só os loucos ouvem estrelas como Olavo Bilac; conversam com o mar salgado pelas lágrimas de Portugal como Fernando Pessoa; dizem que a voz das águas tem sotaque azul como Manoel de Barros. Só os loucos se comunicam com o inanimado, inventam, fantasiam, voam fora da lógica, criam metáforas, dão mais importância ao sonho que à realidade. A poesia é doença da alma, sublimação, catarse. Abílio recorre à psicanálise de Freud para falar do inconsciente infantil e de sua influência, das emoções traumáticas, dos conflitos não resolvidos, das angústias. Poesia só Freud explica ou não. Poesia é orelha decepada de Van Gogh.

A história dos irmãos Abílio e Manoel tem carga dramática para se tornar filme, penso, enquanto fecho as abas de papel cartonado do pequeno livro.

E agora, voltemos nossa atenção para o poeta Manoel de Barros, advogado, fazendeiro e poeta, nascido em Cuiabá/MS, no dia 19 de dezembro de 1916. Passou a infância em Corumbá, mudou depois para Campo Grande, cidade que escolhe para viver e morrer.

Nos anos 80, Millôr Fernandes começou a mostrar ao público, em suas colunas nas revistas “Veja” e “Isto É”,  as poesias de Manoel de Barros. Outros fizeram o mesmo e, através de tanta recomendação, a Editora Civilização Brasileira publicou um conjunto de seus poemas com o título de Gramática Expositiva do Chão. Agraciado com inúmeros prêmios, o poeta foi reconhecido nacional e internacionalmente como um dos mais originais do século e mais importantes do Brasil.

Manoel de Barros, poeta que se integrou harmonicamente ao firmamento, aos animais pantaneiros e a todos os seres numa convivência feliz através da palavra, faleceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 13 de novembro de 2014, aos 98 anos.

Cabe colocar como conheci o poeta Manoel de Barros. Aos vinte anos, comecei a publicar meus poemas no jornal Correio do Estado de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Com coragem, entrei na sala do Prof. Barbosa, proprietário do jornal, mostrei-lhe alguns poemas datilografados, li-os em voz alta e pedi que os publicasse. Daquele dia em diante, ininterruptamente, por trinta anos, passei a levar o pão da poesia para meu povo. Quando publiquei o primeiro livro de poesia, intitulado Via Sacra, dez anos depois, em 1981, já havia formado um público leitor.

O meu poema “Campestre” começava assim:

Há um grilo que brilha

Agarrado à folha

E uma estrela que canta

Presa na mata.

No mesmo dia de sua publicação, recebi o telefonema da Prof. Glorinha, mestra de Literatura e de vida, informando-me, com entusiasmo, que o poeta Manoel de Barros lera o poema, gostara muito e vaticinara: “Há uma poeta entre nós.” Marcamos, então, um encontro em sua antiga casa, na Rua Rui Barbosa. Lá estava eu, com alguns poemas numa pasta, trêmula, aguardando-o numa sala com cadeiras de palhinha. Ele me levou ao escritório cheio de livros, cadernetas e um quadro de Picasso. Falou que leria os poemas, mas que seria duro, cortaria, criticaria, usaria a lima, atingiria com espada os ossos até a medula das palavras. A certa altura da conversa, chorei, chorei muitíssimo, porque a paixão pelo ofício, pela chama azul e vermelha da Poesia me consumia, me queimava.

Alguns dias depois, ele me enviou uma carta generosa e paciente, escrita a lápis, com sua letrinha miúda. Guardo essa carta, verdadeiro tratado sobre poética, com imenso carinho. O poeta maduro e sofrido, compartilhando seu conhecimento intuitivo, existencial e poético com a jovem aprendiz.

Dizia a carta:

Raquel,

Conselhos não vou dar. Nem a poetas se dá isso. Poeta é sempre nuvem. Em você subjaz a sensibilidade, o resto você desbrava. Ou então ela, a poesia, é que a vai desbravar.

Achei desiguais seus poemas. Em alguns, você consegue a transfiguração da realidade. Cito a “Feira” da qual já falamos. Talvez isso em você depende da maneira de construir o poema. Veja uma coisa. O poema “Árvore Aberta”. Vou lendo, sem me transportar, (você não me tirou uma imagem qualquer da realidade), vou lendo, encarando a árvore como árvore comum. Ao fim é que notei a imagem que transfigura: o poeta é uma árvore aberta! Lido o poema de novo, já com a imagem transfigurando a árvore-comum em poeta-árvore, daí então a poesia se comunicou. Há muita coisa sua com essa feitura. É preciso colocar o leitor desde o primeiro verso, se possível, ou desde a primeira estrofe, dentro da supra-realidade. É preciso que se implante a mágica. E mágica em poesia, você sabe, é com metáfora que a gente implanta. Ou com música. Sei lá, um mistério desses.

Noto ainda que você dá mais importância aos sentimentos do que às palavras. Aos movimentos do coração mais que os da inteligência. Você tem um mundo interior muito bonito e se empolga com ele, esquecendo um pouco o verso, essa unidade rítmica do poema. Sinto que você quer se contar, e muitas vezes, para isso, se derrama quase prosaica.

Eu acho que a gente tem obrigação de escolher as palavras, ou, pelo menos, rejeitar algumas que soam feias. Eu acho a palavra Trago muito feia. Eu não a usaria nunca para título. Bem sei que por um casamento certas palavras feias viram bonitas. Assim, desafiaram uma vez o poeta Manuel Bandeira para embelezar a palavra protonotário (feia em si). Pois o poeta arrumou um poema de ritmo tão bonito e amigo que deu certa aura de simpatia a protonotário.

Eu evitaria alguns lugares-comuns como estes: desejos frustrados; reflexos prateados; alegria de viver; sonhos inatingíveis; estéril deserto; etc. Lugar-comum é esclerose da língua. Poeta tem como função descobrir novas relações para as palavras. Exemplo um. Em vez do surrado luar prateado, o poeta Jorge de Lima inventou o luar salobro. Assim, ele renovou a linguagem, salvando o luar da esclerose. Acho melhor, para a poesia, dizer conspícua borboleta do que brejeira borboleta; melhor brejeiro anacoreta do que conspícuo anacoreta. Coisas assim que ensinam a penetrar no reino das palavras.

Outra coisa. Elemento construtivo do verso é o ritmo. Verso é mesmo uma construção fônica. Cato em você uma frase: “Onde as graves consequências do que se afirma?” Dentro às vezes de um outro contexto poderia até valer, mas ali me pareceu sem força de verso. Sei que não se pode julgar um verso fora do contexto. Às vezes, sua força vem de outras ideias e outros ritmos que estão para trás. Sei de tudo isso. Sei que o que comanda o ritmo de um verso pode ser até uma imagem ou mesmo uma só palavra. Mas esse me pareceu um verso que está sem o ritmo que o possa tornar poético.

Gostei de alguns poemas do livro que achei à altura daquele que me chamou a atenção. O seu mundo interior é fascinante, mas não se empolgue tanto em contá-lo. O fazer poético é que torna o poema durável. Não é seu assunto. Todos os assuntos já foram ditos. Mas eles só ficam na terra se fundados, inventados de novo pela linguagem, transfigurados.

Tirei alguns exemplos de versos, palavras, ao acaso, de seu livrinho. Este é um comentário carrasco. Poderia também destacar os versos bons, os poemas bons. Fiz uma pequena cruz nos poemas que gosto. Sei que você, com aplicação, com trabalho, penetrando no reino das palavras, dando especial atenção a cada verso – sei que você poderá transformar toda a matéria em boa poesia. Porque são bons, são lindos os sentimentos.

Raquel, na verdade eu não gosto da realidade. E quando alguma coisa me joga fora dela, eu gosto. O Cão sem Plumas é nome de um livro de João Cabral, como você sabe. Só o título já nos põe fora da realidade. Entende-se que no mundo do poeta os cães têm plumas; mas ele vai falar de um cão sem plumas que é a sua poesia pelada, rigorosa, sem plumagem de adjetivos. Maiakóvski tem um livro chamado A Nuvem de Calças. Logo o título bota a gente fora da realidade. A nuvem dele é um ente de calças com a cabeça nas nuvens. Acho importante a transfiguração da realidade. Um dia inventei um alicate cremoso. Coisa absurda, irreal. Mas trouxe-me uma sensação boa de reconciliação dos meus contrários. As nossas contradições profundas às vezes se reconciliam através de um casamento anômalo entre palavras.

Depois, enfim, ninguém sabe nada sobre poesia. Mas é bom conversar sobre ela. Gosto mais das coisas que eu não entendo. Principalmente gosto daquelas que eu entendo de diversas maneiras. A ambiguidade é que abre o poema para todos os desentendimentos.

Abraço para você e Ademar,

Manoel

Todas essas recordações jorraram aos borbotões na memória, depois de ter assistido ao documentário Só Dez por Cento é Mentira, do cineasta Pedro Cezar. Emocionei-me ao ver as ruas largas de minha cidade, a Avenida do Poeta tingida de pôr do sol, as árvores do cerrado em forma de arabescos negros e o casario do Porto de Corumbá, à beira do rio Paraguai, com os muros caiados, cobertos de musgo, que guardam séculos de história e decadência. Emocionei-me ao ver o poeta se entregando ao cineasta e o cineasta se entregando ao poeta. Uma entrega de amor e fina sintonia. O poeta respondendo às perguntas com brilho de inteligência e humor. O cineasta captando cada detalhe, cada palavra, cada gesto, cada objeto como moldura e base da gênese da poesia. As pessoas que dão seus depoimentos sobre o poeta como Bianca Ramoneda, Viviane Mosé, Abílio de Barros, João de Barros, tornam-se personagens de uma história maior: a magia de conviver com o poeta e sua obra. E há os personagens fictícios que se misturam aos reais, com mais realidade ainda: são duplos, máscaras, alteregos, seres fantásticos, capazes de criar inutensílios e guardar águas como o Poeta.

As duas vertentes mais fortes do documentário são: a reflexão sobre arte e a volta à infância. Na arte, a poesia se configura como loucura de palavras, montagem de imagens ilógicas, matéria e poesia retirada do lixo, do monturo, do que a civilização joga fora como inútil. A infância é o lugar marcado pelo êxtase da vida, jogo inocente do que se faz e experimenta. É saudade de um tempo pleno que se renova constantemente em devaneios. É o estado primordial, inaugural, potência e reinvenção. Assim como Drummond, Manoel de Barros é o Menino Antigo.

O documentário tem um grand finale, uma chave de ouro que fecha, explica, eleva e confirma o universo do Poeta: um desfile dos personagens e suas referências. Uma homenagem ao filho do poeta, o advogado, fazendeiro e piloto, João Wenceslau de Barros, vítima de acidente de avião, em 1991, aos 52 anos, ocorrido na Fazenda Santa Cruz, no Pantanal da Nhecolândia, dando início a luto fechado e recolhimento do casal Manoel e Stelinha,  até a morte do poeta, sete anos mais tarde. Não tirava mais fotos. Disse certa vez: “Foto de ruína é bobagem, pois só quem gosta de escombro é gafanhoto”.

É grande e notória a identificação de Manoel de Barros com a obra do romancista mineiro Guimarães Rosa. Conto sobre o famoso encontro de Manoel de Barros com o escritor João Guimarães Rosa, em 1952, quando Rosa fez uma excursão a Mato Grosso. O resultado foi uma espécie de reportagem poética a respeito da vida dos vaqueiros do oeste do Brasil, intitulada “Com o Vaqueiro Mariano”.

Rosa observou a natureza e o comportamento dos boiadeiros, Manoel de Barros foi seu guia pantaneiro. Que embate formidável de mentes poderosas, dois colhedores de palavras-frutos. Manoel falou sobre isso em entrevista para a revista Bric-à-Brac: “... vi poucas notas da viagem de Rosa ao Pantanal. Quis saber, ele, ainda, de meus receios sobre as confusões com o exótico. Falei, falei demais, espichei. Dei a entender que estava olhando o Pantanal só como uma coisa exótica. Um superficial para só ver e bater chapa. Mesmo os que cantavam em prosa e verso ficavam enumerando bichos, carandás, aves, jacarés, seriemas; e que essa enumeração não transmite a essência do pantanal, porém só sua aparência... Precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com sua estética, com sua linguagem calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a natureza.”

Desse encontro, segundo artigo de Paulo Ribeiro, surgiu um livro raríssimo de Rosa intitulado Com o vaqueiro Mariano, em que Manoel de Barros transformou-se num personagem. Rosa escreveu na abertura: “Em julho, na Nhecolândia, Pantanal do Mato Grosso, encontrei um vaqueiro que reunia em si, em qualidade e cor, quase tudo o que a literatura empresta esparso aos vaqueiros principais. Típico e não um herói, nenhum. Era tão de carne e osso, que nele não poderia empessoar-se o cediço e  fácil da pequena lenda. Apenas um profissional esportista: um técnico, amoroso de sua oficina. Mas denso, presente, almado, bom condutor de sentimentos, crepitante de calor humano, governador de si mesmo; e inteligente. Essa pessoa, este homem, é o vaqueiro  José Mariano da Silva, meu amigo.”

Carolina Barros, esposa de Abílio, conta que nessa mesma ocasião, Rosa conversou longamente com Abílio numa viagem de trem pelo Pantanal.

O Vaqueiro Mariano seria afinal Ábílio ou Manoel? Ou um pouco de ambos? Esse é o mistério.

No livro Ave, Palavra, de  Guimarães Rosa, destacam-se dois capítulos que falam sobre essa expedição a Mato Grosso: em “Sanga Puytã” ele descreve sua viagem a partir de Aquidauana, sul avante, rodando as etapas por onde passou a Retirada da Laguna. Cita as macaubeiras amarelas tostadas pela geada, o verde veloz dos cerrados, a serra de Amambai refletida no poente, as casas velhas e espaçadas de Nioaque. Chega a Campo Grande, onde “aportam risos do Paraguai em pares de olhos escuros”, no ritmo das polcas e das guarânias. E lá estão também a serra de Maracaju; o rio Machorra, com sua mata em galeria; os cinamomos às portas de Bela Vista; o Apa, cor de folha e a cidade fronteiriça de Pedro Juan Caballero, num “relento de eremitério e guerra”. E, finalmente, Rosa lança um derradeiro olhar para o vilarejo de Sanga Puytã, “à borda de um campo com cupins e queimadas”. Confessa o escritor amante das palavras: “Apenas a gente pensa que a viagem foi toda para recolher esse nome encarnado, molhado, coisa de nem vista flor”.

Abílio e Manoel de Barros: dois irmãos pantaneiros, escritores, fazendeiros.

A palavra “fazenda”: vem de “fazer”, de “coisas que devem ser feitas”. E assim é a lida na fazenda: há que se arar a terra; preparar o solo com adubo para a lavoura; produzir leite e queijo; realizar reformas nas cercas e nos currais; criar gado; edificar casas; lançar os alicerces dos celeiros; operar tratores e máquinas; replantar o pasto; organizar as colheitas; perpetuar os frutos entre sóis, luas, chuvas e estiagens. O fazendeiro seria o dono, o criador, o gestor, uma espécie de pai. O que dá existência à própria vida da fazenda.

Manoel de Barros no seu livro Pré-Coisas: roteiro para uma excursão poética no Pantanal, que mistura prosa e poesia,  retrata o universo das fazendas, do ermo onde ele e Abílio se mantiveram. Apresenta sua terra, Corumbá, a Cidade Branca, com orgulho, viajando de lancha ao encontro de si mesmo, de seu personagem, de seu alter-ego, num “rio Paraguai empeixado e cor de chumbo”, que “flui entre árvores com sono”. Sente o cheiro dos currais; vê casas nascendo; meninos recolhendo vacas no lusco-fusco, na semi-escuridão; depara-se com o agroval, onde arraias viram ninhos de larvas, cios, pólens e sêmens fervilhantes. Sente o “perfume de terra molhada que invade a fazenda”. Deleita-se com o mundo sem limites do pantanal cheio de cogumelos nos troncos e bagunça de periquitos nas ramagens. Ouve o ranger da carreta de bois puxando cordas tiradeiras. Conta que, assim como os cafeicultores paulistas iam passear e se cultivar em Paris, no sentido de obter cultura, assim também houve o caso daquele fazendeiro que, da Europa, enviou bilhete ao gerente do banco: “_ Venda carreta, bois do carro, cangas de boi”. “O boi cria o pantaneiro”, conclui melancólico. A sua faina de fazendeiro/fazedor de poemas é cheia “de nó pelas costas”, “pois tem que transfazer natureza.” Transfazer, entende?

Abílio e Manoel de Barros, sábios fazendeiros. Acreditemos como eles que é possível plantar sementes em solo fértil, regá-las, prover-lhes nutrientes de leitura e prazer, protegê-las das ervas daninhas do desprezo e da ignorância, entregá-las nas mãos de Deus e do Tempo. Milhões de fazendeiros/escritores vivem desse processo há séculos. Nem todas as sementes germinam nos solos e nas mentes. Mas vamos fazendo as coisas que devem ser feitas, pois elas são inerentes ao nosso ser. Literatura é um desejo de ser e de fazer.

Palestra proferida no dia 19 de junho de 2018, às 20h, na Associação Nacional dos Escritores (ANE), no auditório Cyro dos Anjos e postada no site da ANE: https://www.youtube.com/watch?v=jikU3plaeXw&feature=youtu.be

RAQUEL NAVEIRA é escritora, professora universitária, crítica literária, Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, autora de vários livros de poemas, ensaios, romance e infantojuvenis.. Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (onde exerce atualmente o cargo de vice-presidente) , à Academia Cristã de Letras de São Paulo e ao PEN Clube do Brasil.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

-BARROS, Abílio de. Poesia. Campo Grande/MS: edição independente,, 2017.

- Histórias de muito antes. Campo Grande/MS: Editora UNIDERP, 2004, 1ª edição.

- Gente Pantaneira: crônicas de sua história. Série Memória Sul-Mato-Grossense do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, organização de Hildebrando Campestrini, 2012.

- NAVEIRA, Raquel. Quarto de Artista (ensaios). Rio de Janeiro: Íbis Libris, 2014.

- PONTES, José Couto Vieira Pontes. História da Literatura Sul-Mato-Grossense. São Paulo/SP: Editora do Escritor, 1981.

- ROSA, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, 28ª edição.