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  • Fonte: Recepção a Angelita Gama para Academia Paulista de Letras

Ao iniciar a “Metafísica”, Aristóteles declara que “todos os homens, ou seja, homens e mulheres, gregos e bárbaros, livres e escravos, por natureza, tendem ao saber”1. É o conceito helênico de “maravilha”, a suscitar nos humanos a procura propriamente filosófica. A maravilha é a origem da filosofia, ou seja, da procura desinteressada de saber, livre das necessidades materiais e também do desejo da comodidade ou do prazer.

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“A maravilha não é um sentimento fácil de se provar, frequente, difuso, mas um estado de ânimo raro e valioso. Ela é a expressão da verdadeira liberdade: liberdade da necessidade e dos outros desejos”2.

Sentir-se maravilhado é impregnar-se de encantamento. Para alguns escolhidos, adquire um ressignificado: culmina por uma devoção integral à pesquisa. Essa a missão do cientista. Deslumbra-se com o mistério. Questiona-se, com perguntas muito circunscritas, sobre uma determinada classe de fenômenos ou de eventos que constituem o objeto de sua busca.

Visionária, precursora, pioneira e predestinada, ANGELITA GAMA é também a primeira mulher cientista a adentrar o pórtico da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS.

Sua vida é um romance bem urdido. Apaixonante, instigante, disseminador da certeza de que nada é impossível para quem submete os condicionamentos a uma vontade hercúlea. ANGELITA nasceu com aquela certeza: sou capaz de transformar o mundo. Já foi superiormente retratada por nosso confrade IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO, também imortal da Academia Brasileira de Letras, numa obra prefaciada por JOSÉ PASTORE, outro confrade. Ambos escreveram com emoção. A trajetória de ANGELITA suscita encantamento. Mas ainda serviria a uma novela, a uma série televisiva, o ofício da querida MARIA ADELAIDE AMARAL, tão sedutores os caminhos trilhados por essa menina que saiu da Ilha do Marajó e ganhou o mundo.

Determinação, ousadia e audácia. ANGELITA quis estudar medicina e o fez com garra e brilho. Quis fazer residência em Cirurgia. Conseguiu. Mas não havia limites para quem nasceu predestinada a aplainar caminhos para as mulheres que, desde há muito, viviam vidas traçadas pelos homens.

Acreditar em si mesma, na sua capacidade e nas potencialidades hábeis a derrubar muralhas, foi a proposta que observou em todas as etapas de uma jornada de glórias.

E assim foi para Londres, conquistou os mais respeitados e cobiçados dentre os graus acadêmicos, converteu-se na papisa de sua expertise. Obteve infinidade de títulos, recebeu incontáveis honrarias, tornou-se verdadeira celebridade. Mas – e isso é fundamental se explicite e se enfatize - preservou a essência de uma vocação voltada à benevolência. A generosidade habita sua alma. O ser humano é a matéria-prima de sua ciência e o destinatário de sua aplicação.

Quantas milhares de vida mereceram a exação dos ofícios de ANGELITA e se prolongaram anos a fio? Quantas famílias não reverenciam a Doutora ANGELITA, que lhes devolveu entes queridos para os quais já não havia esperança?

A opção dessa mulher que sempre estudou e que ainda estuda foi investir no conhecimento e perseverar, rumo à perfectibilidade para a qual nasceram os humanos, até atingir a plenitude possível. Mas ao aí chegar, prossegue em contínuas superações. Pois não há limites no processo de aquisição da sabedoria.

Por uma singular concessão da Providência, teve a seu lado o parceiro ideal. Veio então, a partilha do conhecimento, do amor à ciência, que os uniu para a conquista dos pináculos da medicina, mas daquele amor que move o sol e as demais estrelas e os manteve unidos como mulher e marido, num casamento paradigmático. Que homem, além de JOAQUIM GAMA, poderia acompanhar esse dínamo incansável, essa guerreira que não oferece tréguas quando se trata de crescer em habilidade, em perícia, em eficiência e dedicação?

Eis a comprovada demonstração de que pode haver cumplicidade na profissão, despida do espírito de competição que amarga as melhores intenções, da concorrência que desespera, do ciúme que sufoca o bem querer.

O amor é o ingrediente que na história de ANGELITA GAMA não tem faltado. Ao contrário: é abundante, derrama-se e atinge outras esferas. Tudo aquilo que fez e faz, está impregnado de amor. “O verdadeiro amor é uma expressão da produtividade interna e compreende solicitude, respeito, responsabilidade e conhecimento”.3 “Até mesmo o Olimpo (onde ANGELITA e JOAQUIM GAMA hoje se encontram por mérito) é deserto sem amor”4.

A doação integral à causa que abraçaram não os privou de convívio fraterno com uma legião de amigos. Para estes, são paradigma e farol. Pois sabem ambos que “para o corpo doente é necessário o médico. Para a alma, o amigo: a palavra afetuosa também sabe curar a dor”5.

Outra lição que se extrai da personalidade que hoje é solenemente recebida na Casa de Cultura por excelência da gente bandeirante, é sua irrestrita doação ao trabalho. Incansável, enfrentou e continua a enfrentar a extenuante lida em favor da vida. Desde cedo, habituou-se ao esforço. E “o hábito do trabalho modera qualquer excesso, induz à necessidade de organização, ao gosto pela ordem; da ordem material remonta-se à moral: portanto, o trabalho é considerado como um dos melhores auxiliares na educação”6. Educação que exerce na ininterrupta docência científica e convencional, mas, o que é o mais importante, milita a educação pelo exemplo.

A ciência deve muito a ANGELITA GAMA. “Os deuses certamente não revelaram tudo aos mortais desde o princípio. Mas, procurando, os homens encontram pouco a pouco o melhor”7. Ela investigou, indagou, insistiu. Venceu com a ciência, este “grande antídoto ao veneno do entusiasmo irracional e da superstição”8. Amealhou um acervo precioso de “experiência concentrada”9, com a qual reduziu, substancialmente, a miséria e a tristeza no mundo. Em paralelo e em síntese, “aliviou a fadiga da existência humana”10.

Ao inaugurar técnicas até então inexploradas, ANGELITA não se resumiu a desvendar na ciência as respostas às dificuldades que encontrava no trato de seus semelhantes. Sabia que “o cientista não é aquele que fornece as verdadeiras respostas; é quem faz as verdadeiras perguntas”11.

Eis aqui a comprovação irrefutável de que não existem barreiras se a escolha certa se abriga naquele recôndito de que só o próprio interessado tem as chaves e pode imprimir ritmo e rumo: a faculdade de querer. Mas um querer impulsionado pela convicção de que o impossível é palavra excluída do dicionário dos vitoriosos.

A ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, neste ano em que completa o seu 115º aniversário, reveste-se de verdadeiro júbilo por receber a sua primeira imortal mulher cientista. Se a contribuição de ANGELITA GAMA para a medicina pudesse merecer modesta síntese, o verbete utilizado seria “beleza”. Pois “beleza é verdade, verdade é beleza” – isso é tudo o que conheceis sobre a Terra e é tudo o que precisais conhecer”12.

Beleza em sua mais pura acepção. Beleza do espírito, mas também beleza física. A figura elegante e esbelta, bem vestida e sorridente, é aquela que nos faz pensar: “Oh! Ela ensina as luzes a brilhar!”13.

Para todos nós, crentes na cultura, nas letras, no inefável, cumpre-nos reconhecer que “toda beleza é como um raio e vestígio da imensa formosura de Deus. Por isso a recebemos como um bem e a admiramos”14.

Sede bem vinda entre nós, confreira imortal ANGELITA GAMA.

1 ARISTÓTELES, Metafísica I, 980 a.1.

2 BERTI, Enrico, No princípio era a maravilha, São Paulo: Edições Loyola, 2010, p.6.

3 ERICH FROMM, psicanalista alemão, 1900-1980, A Arte de Amar.

4 H. VON KLEIST, escritor alemão, 1777-1811, Anfitrião, II, 5.

5 MENANDRO, comediógrafo grego, 342-291 a.C., Fragmentos, 591.

6 M.T.D’AZEGLIO, político e escritor italiano, 1798-1866, I miei ricordi, XXX.

7 XENÓFANES, poeta e filósofo grego, 565-470 a.C., Fragmentos, 18.

8 ADAM SMITH, economista escocês, 1868-1936, Pensamentos inatuais.

9 R. BACCHELLI, escritor italiano, 1891-1985, I diavolo al Pontelungo I, 5. A citação completa é “A ciência é a experiência concentrada”.

10 BERTOLD BRECHT, escritor alemão, 1898-1956, Vida de Galileu, XIV.

11 CLAUDE LÉVI-STRAUSS, antropólogo francês, 1908-2019, O cru e o cozido.

12 J. KEATS, poeta inglês, 1795-1821, Ode on a Grecian Urn

13 SHAKESPEARE, 1564-1616, Romeu e Julieta, Ato I.

14 JUAN LUIS VIVES, 1492-1540, Tratado da Alma, III.