É do pintor espanhol barroco, Diego Velásquez (1599-1660), o célebre quadro “Vênus ao Espelho”. Que ousadia representar a deusa do Amor nua, reclinada sobre musgo de veludo, mirando a face no espelho, seguro por Cupido ou Eros, pequeno menino alado. Vênus adorna os cabelos com violetas, morde maçã com canela, acaricia os seios brilhantes como luas. Toda ela é úmida: anêmona de primavera, espuma marinha, pele nacarada. Tão atraente, fora de qualquer limite, força dissoluta. Quem não seria seduzido por ela? Quem quebraria esse encanto? Um mortal? Uma divindade? Um poeta? Deleito-me com essa visão.
Tenho um espelho de rainha igual a esse do quadro sobre minha penteadeira. É meu emblema lunar e feminino, antigo presente de casamento. Nele transparece minha essência infinita, meus pensamentos ocultos. Já poli tanto a prata desse espelho. Ele está tão puro que, ao olhar em volta, vejo tudo que me cerca, com nitidez: astros refletidos, raios de luz, o conteúdo do meu coração, enfim, toda a verdade. E a verdade é que envelheço como uma uva de outono. Corajosa, não me busco em fotos antigas do passado. Mesmo fraca e doente, sou guiada pelo espelho. Como Dorian Gray, na novela do escritor britânico, Oscar Wilde (1854-1900), o meu retrato envelhece na moldura fina desse espelho.
Como terá se sentido a louca soberana dos hebreus, Jezabel, admirando sua beleza pela última vez no espelho? Segurou a haste, contemplou-se. Era sacerdotisa mística, feiticeira que obrigava todos a cultuarem Baal e a sacrificar crianças em nome da inocência. Quando soube da revolta do profeta, sentou-se, pintou os olhos com cajal preto, colocou na cabeça a coroa de diamantes. Os eunucos a atiraram da janela, seu sangue tingiu as paredes e os cavalos. Foi devorada pelos cães. Só restaram o crânio, os pés, as mãos. Que cena lúgubre!
Vampiros não se veem no espelho. Ausência total de imagem. Congelados no tempo. Desprovidos de alma, sangue e vida, deambulam pelo mundo através dos séculos. Fernando Pessoa (1888-1935), o poeta português, comparou-se a um quarto com inúmeros espelhos fantásticos, que torcem tudo, em reverberações falsas. Uma única anterior realidade, que não está em nenhuma e está em todas. Já José Saramago (1922-2010), também português, detentor do Prêmio Nobel de Literatura, no romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, imaginou um encontro sobrenatural entre Ricardo Reis, o heterônimo latinista de Fernando Pessoa, com o fantasma do próprio Fernando Pessoa. Criatura e criador frente a frente. E aí a mágica vampiresca acontece: Fernando Pessoa levanta-se do sofá, passeia pela saleta, para diante do espelho. Sabe que está olhando no espelho, mas não se enxerga. Percebe que se tornou uma densa sombra. Uma sombra, é tudo que lhe restou.
Busco-me novamente no espelho e me descubro nesse vidro de poço profundo. Tenho imperfeições, marcas, inteligência criativa nos olhos, embora baços. Olharei mais uma vez antes de sair. Não me esquecerei de meu rosto. Ele refletirá as palavras que carrego e que me confrontam. Ajeito os cabelos. Espremo os lábios. Tudo em mim é simples e natural nessa combinação de alma e corpo, que logo, logo se desmanchará.
“Vênus ao espelho” ... Uma obra de arte é assim: única, inédita, inesquecível. Digna de admiração. Impactante. Reveladora. Abaixo o cabo do espelho e o coloco virado sobre a penteadeira.