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Raquel Naveira

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A luz está sempre relacionada às trevas. Uma época sombria, de decadência e decomposição, é seguida de uma época luminosa e regenerada. Do drama de uma semente enterrada na cova, nasce uma planta nova. A luz é o conhecimento que elimina o mal e o castigo.

Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um poeta e contista ultrarromântico, que morreu com apenas vinte anos de idade. Sua obra é forte, de cunho erótico e revolucionário, influenciada por Byron e Musset, desenvolvida dentro da estética do “mal do século”. Segundo o crítico português Lopes de Mendonça, ele era “um jovem poeta que cantava porque lhe ardia no peito um fogo devorador, porque sua alma ébria e palpitante lhe acendia a imaginação e o fervor de seus desejos”. Lutava entre luz e trevas, como nestes seus versos: “Cavaleiro das armas escuras,/ Onde vais pelas trevas impuras/ Com a espada sangrenta na mão?” Ora Álvares Azevedo demonstrava ser um estudante aplicado de Direito, na Escola do Largo São Francisco, de São Paulo, ora participava de reuniões marcadas por orgias com prostitutas, responsáveis pelo suicídio de colegas confusos e melancólicos.

Escreveu uma peça teatral intitulada “Macário”. “Macário” em grego significa “bem-aventurado”, “feliz”. Um nome de luz para um personagem que vive nas trevas, mergulhado no pessimismo. Que encarna a tensão entre ideal e realidade, corpo e espírito, fé e descrença. Um homem dividido entre a máscara luminosa e a sombra interior.

Tal qual na tragédia “Fausto”, do alemão Goethe (1749-1832), obra-prima do teatro ocidental, Macário dialoga com o Diabo. A linguagem é viva, cheia de elementos góticos. São discussões existenciais, filosóficas, irônicas, sobre a condição humana, o sentido da vida, a corrupção social, o tédio, o fracasso das esperanças, o desmonte das ilusões. Algumas frases colhidas do texto: “O mundo é uma taverna onde cada qual bebe o que traz”; “Eu rio da humanidade porque a conheço”; “A humanidade é um livro de páginas rasgadas”; “O homem sonha, acorda, sofre e por fim dorme de vez”.

Macário é, claramente, o alter-ego do desencantado poeta. O Diabo é uma projeção espelhada do próprio Macário. Um duplo. Entre os dois não há medo. Há naturalidade, intimidade, afinal o Diabo mora dentro dele. É tudo que ele reprime: ironia, descrença, cinismo. É a parte oculta de uma mesma personalidade. Macário é um sujeito trevoso, que vagueia sem rumo. Surgiu então este meu poema:

Trevoso,
Coberto de trevas:
A pele espessa,
O olhar escuro,
O nariz tortuoso,
O lábio amargo;
Terríveis trevas
No rosto aflito.

Trevoso,
Oculto nas trevas:
Seu reino
Desde o berço,
Desde o erro,
Desde a mais remota antiguidade.

Trevoso,
Imerso na noite,
Num véu de ignorância
Que abafa a verdade
Como um tule negro.
Difícil transpor
O abismo
Do temor.
Difícil compreender
O drama
De quem não ama.
Bastaria uma chama,
Uma pequena luz
Para abalar esse território tenebroso.

Álvares de Azevedo... grande talento. Pobre poeta a quem faltou tempo. Terá visto, no último instante, gemendo depois de um acidente de cavalo, os pulmões cheios de água, a claridade de Deus penetrando pela janela, pelos ossos e dissipando as trevas?

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