Geraldo Nunes
Uma carta escrita pelo padre Anchieta a seus superiores da Companhia de Jesus, nos dá noção de como era o colégio dos jesuítas na época da fundação da cidade, em 1554. “Celebramos nossa primeira missa em um lugar paupérrimo, com paredes de barro socado e coberto de palha... e a ele demos o nome de São Paulo, por ser a data da conversão deste santo...”
José de Anchieta revela em outras cartas as dificuldades para convencer os indígenas a seguirem a vida cristã e conta que em alguns momentos a vontade teria sido a de desistir, mas o padre seguia adiante. Ao deixar a Vila de Piratininga, viaja para outras partes das terras portuguesas recém-descobertas e dá continuidade à sua missão, enquanto nas imediações do Colégio de São Paulo, segue a vida extremamente pobre dos poucos moradores que vivem da extração de marmelo para a fabricação de doces e se alimentando do que era produzido na roça e aquilo que era obtido com a caça e a pesca.
Moças casadoiras trazidas de Portugal para se unirem aos “homens bons”, ou seja, os filhos da coroa lusitana, aqui contraíam matrimônios e pariam suas crianças. Depois ficavam aguardando a volta de seus maridos que partiam sertão adentro para se embrear nas matas e ali ficar por tempo indefinido. Estes, por sua vez, levavam consigo as chaves dos cintos de castidade de suas esposas.
Quem mais se demorou pelos interiores do Brasil a desbravar, foi Antônio Raposo Tavares (1598-1659) cuja expedição percorreu em três anos cerca de 10 mil quilômetros. Entre 1648 e 1651, seguiu ele pelo Rio Tietê até alçar o Paraguai e de lá subindo a correnteza, “...remontou às terras de Quito, desceu até Belém do Pará pelo Rio Amazonas e de lá pelo litoral chegou à capitania de São Vicente...” (Ensaios Paulistanos, p. 634.). Ao retornar para São Paulo, Antônio Raposo Tavares estava tão desfigurado que ninguém, nem mesmo o cão de estimação o reconheceu, somente a esposa o aclamou pelo nome.
Naquela longínqua Vila de Piratininga, cravada além do topo da Serra do Mar, quase não se falava o português, mantiveram-se os dialetos indígenas, pronunciados até mais da metade do século 18. Desta influência permanece o sotaque caipira dos paulistas. Naquele tempo quase nenhum deles conseguia formar frases em português de maneira correta com as letras “R” e o “LH”. Por isso ainda hoje algumas pessoas pronunciam: “cuié” para colher, “muié” para mulher e assim por diante.
No século 19 com a chegada do trem, o crescimento das exportações de café iniciadas ainda no período imperial passou a gerar fortunas e São Paulo assim ganhou novos sotaques surgidos após o final da escravidão, com os italianos que chegaram e trouxeram seus dialetos como o vêneto, o napolitano e outros. Para o cronista Antônio de Alcântara Machado, autor de Brás, Bexiga e Barra Funda, a pronúncia paulistana passou a ser “macarrônica”.
Graças ao bonde e às indústrias a São Paulo do século 20 se desenvolveu, prosperou até chegar à condição da metrópole muitas vezes irrespirável e caótica que perdura neste século 21, embora também atraente pelas ofertas de trabalho que proporciona, além dos inúmeros eventos ligados à cultura, esportes e gastronomia.
O nome Piratininga (peixe seco) está definitivamente superado, tamanha a quantidade de córregos e rios canalizados, entre eles o Anhangabaú, além do Tietê e Tamanduateí completamente poluídos. A cidade segue cheia de contradições. Leva vida de primeiro mundo na Rua Oscar Freire e em outras de bairros abastados, mas é paupérrima nas periferias e degradante em áreas tradicionais como o centro no qual pessoas dormem ao relento em meio à Cracolândia
Também é verdade que os frutos das primeiras sementes lançadas no solo do antigo colégio de Anchieta ainda são colhidos. São Paulo possui as melhores escolas, hospitais e gera negócios capazes de garantir empregos diretor e indiretos para todo o Brasil e novas sementes seguem sendo lançadas para atender aos anseios dos que querem progredir e buscam dias melhores. O que será de São Paulo e, aonde iremos parar? Só mesmo Anchieta para dizer.
Fontes: Cartas de Anchieta – Reedição/ 2004 - História de São Paulo Colonial, Maria Beatriz Nizza da Silva/Ed.Unesp/2011 – Ensaios Paulistanos pg. 634 - Nos Tempos dos Bandeirantes – Belmonte/Editora Melhoramentos/4ª edição/1948 - Época Colonial Brasileira, de Sérgio Buarque de Holanda, Ed. Bertrand Brasil, Reedição/2006 - A economia colonial brasileira (séculos XVI-XIX - Sheila de Castro Faria 4a. ed., São Paulo/Atual Editora, 2007 – entre outros.
Geraldo Nunes, jornalista, escritor e consultor literário, é titular da cadeira 27 da Academia Cristã de Letras - ACL