Slide

Raquel  Naveira

rouxinol 7790d

O professor de Literatura Brasileira, Nicolino Novello, disse certa vez que no sul de Mato Grosso, havia um taquaral com dois pássaros: Manoel de Barros, o “sabiá com trevas”, referindo-se ao título de uma das partes do livro de poemas Arranjos para Assobio e Raquel Naveira, o “rouxinol”, por causa de um poema do meu livro Via-Sacra que dizia:

Não seria capaz de reconhece um rouxinol
Seria um pássaro roxo?
Terá na garganta um sol?

De onde veio o rouxinol?
Da China?
Da montanha azul?
Do primeiro arrebol?

Como voa um rouxinol?
Alto, sobre as montanhas?
Baixinho, contornando o rio,
O prado que parece um lençol?

Como canta um rouxinol?
Com notas suaves?
Com tons de outono
Como alguém muito só?

Se abrisse a janela
Teria chance de ver entrar um rouxinol?
Será que ele pousaria sobre a caixinha de música
Ou sobre o meu cabelo em caracol?

Um pescador desavisado,
Que nunca tivesse visto um rouxinol,
Poderia confundi-lo com um peixe
Debatendo-se na ponta do anzol?

Quem faz da saudade,
Da dor,
Da melancolia
Um grande rol,
Deve trazer no peito
A pena de um rouxinol.

O rouxinol me faz lembrar a novela portuguesa do século XVI, sentimental e bucólica, Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro (1482-1552), o escritor demente. Inesquecível a descrição da cena da morte do rouxinol:

“ E crescia-me daquilo um pesar; porque a cabo do penedo tornava a água a juntar-se e ir seu caminho sem estrondo algum, mas antes parecia que corria ali mais depressa que outra parte: e dizia eu que seria aquilo por se apartar mais asinha daquele penedo, inimigo de seu curso natural, que como por força ali estava. Não tardou muito que, estando eu assim cuidando, sobre um verde ramo que por cima da água se estendia veio pousar um rouxinol. Começou a cantar tão docemente que de todo me levou após si o meu sentido de ouvir. E ele cada vez mais crescia em seus queixumes, que parecia, que como cansado, queria acabar. Senão quando tornava como que começava. Então, triste da avezinha, que estando-se assim queixando, não sei como se caiu morta sobre aquela água. Caindo por entre as ramas, muitas folhas caíram também com ela. Pareceu aquilo sinal de pesar daquele arvoredo de caso tão desastrado. Levava-a após si a água e as folhas após ela, e quisera-a eu ir tomar; mas pela corrente que ali fazia e pelo mato que de ali para baixo acerca do rio logo estava, prestesmente se alongou da vista. O coração me doeu tanto ao ver tão asinha morto quem dantes tão pouco havia que vira estar cantando, que não pude conter as lágrimas. Certamente que por cousa do mundo, depois que perdi outra cousa, me não pareceu a mim que assim chorasse de vontade; mas em parte este meu cuidado não foi em vão, porque ainda que a desventura daquela avezinha fosse causa de minhas lágrimas, lá ao sair delas foram juntas outras muitas lembranças tristes.”

Lindo. A voz melancólica dessa mulher que se identifica com o rouxinol morto, levado pelas águas e que faz uma catarse de suas próprias mágoas. O célebre fado “Coimbra” faz referência ao rouxinol de Bernardim: Coimbra menina e moça/ Rouxinol de Bernardim/ Não há terra como a nossa/ Não há no mundo outra assim/ Coimbra é de Portugal/ Como a flor é do jardim/ Como a estrela é do céu/ Como a saudade é de mim.

Ah! Que saudade de meus avós, de Portugal, de Coimbra, da menina, moça e velha que há em mim, o corpo enrolado num xale negro, à sombra de um verde ramo, à beira de águas cristalinas que levam o cadáver de um rouxinol. Nos meus olhos, um lacrimejar permanente: Sempre choro ou estou para chorar.

Lembro-me do rouxinol que cantou para Romeu e Julieta em sua primeira e única noite de amor. O rouxinol que cantou até a chegada da cotovia anunciando a aurora e a separação. Na cantiga do rouxinol, todo o amor universal.

O professor Nicolino me chamou de rouxinol. Seria eu um rouxinol de canto melodioso, suscitando o íntimo laço entre o amor e a morte? Um rouxinol na correnteza...creio que sim.

Share on Social Media