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Raquel Naveira

Um grande quadro tomou conta da parede de minha sala: é o “Acasalamento ao Luar”, do artista plástico Jonir Figueiredo (1951-2025). Assim descrevi essa cena num poema:

Os jacarés se encontram,
Os olhos dourados fulgem
Dentro de verde de suas peles,
Do capim duro e selvagem.

Mais tarde, num ninho de folhas quentes,
Estarão os ovos, ásperos e claros,
De onde novos jacarés sairão
Em busca do rio e do luar.

Macho, fêmea, lua, capim, água, peles... o palco do Pantanal. O jacaré é mesmo símbolo dessa imensa planície alagada, que tem a maior população de jacarés do mundo. São milhares. Fervilham às margens das lagoas e baías. Na seca se concentram em pequenas poças d’água. Sobrevivem também às cheias. Aos desafios extremos. São a memória da Terra primitiva. Guardam o mistério dos mananciais. Com seus instintos anfíbios transitam entre mundos, sustentam e equilibram o ambiente.

Da janela do trem, a caminho de Corumbá, eu os observava: quase invisíveis, parados, semelhantes a troncos de árvores boiando. De repente, astutos e prudentes, caminhavam em direção à presa: peixes, aves, caramujos. As enormes mandíbulas abertas, varrendo a lama. Aqui e ali, pedaços de seus rabos e peles se esparramavam, pois sempre se regeneram. São animais encantados, que mexem com nossos medos ocultos.

Foi Jonir que pintou esse quadro mágico. Amigo de tantas décadas, companheiro de ativismos culturais. Entrava sem avisar em nossa casa, para um café ou um mate gelado. Com seus olhos verdes, sua fala mansa de pantaneiro. E quanta história tinha esse desenhista livre: cofundador do Movimento Cultural Guaicuru que exaltava a identidade indígena de Mato Grosso do Sul. Expôs seus trabalhos em países como Japão, União Soviética, Europa e até na ONU, em Nova York.

Teve uma fase, nos anos 80, em que pintou jacarés e carapaças de couro, evidenciando sua preocupação ecológica. Denúncia da intensa exploração na região. O jacaré aparecia como totem, como figura real e mítica, ameaçado e ameaçador, caçado e caçador. Jonir tornou o jacaré um personagem do imaginário coletivo, um ícone da paisagem, um grito plástico, mercadoria de sangue.

Foi nessa época que adquirimos esse quadro. Para nós ele é erótico, representativo de um casamento de seres ancestrais, criativos e equivalentes. Jacarés sorvendo goles de luar no seu habitat natural. Brutos brinquedos.

Jonir faleceu repentinamente numa madrugada fria de julho, enquanto participava da abertura de um Festival de Cinema em Bonito. Naquela solenidade estava elegante, vestindo uma camisa de oncinha. Desfilou fagueiro pelo tapete vermelho. Foi sua hora de estrela. Depois, bebeu um licor de guavira oferecido por seu anfitrião, deitou um olhar de crocodilo sobre a noite escura e dormiu para sempre. Jacaré imóvel na barranca do rio.

Na parede de minha sala, admiramos uma de suas marcas visuais mais reconhecidas. Fertilidade e força dominam nossas vidas.

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