Raquel Naveira
Por que me sinto assim tão melancólica, envolta numa nuvem de nostalgia e beleza, quando leio os romances de Jane Austen? Por que almejo me guardar e proteger do que falo e do que penso, limpar meu coração de toda mágoa, quando leio os romances de Jane Austen? Por que acredito que a maldade do mundo presente não me contaminará, quando leio os romances de Jane Austen?
Jane Austen (1775-1817), a escritora inglesa, que escreveu clássicos como Orgulho e Preconceito, Razão e Sensibilidade, Persuasão, obras que mereceram inúmeras adaptações para o cinema. Legiões de fãs até hoje se reúnem no outono em Bath, entre fontes termais e edifícios ocres de arquitetura georgiana, desfilando trajes de época, recitando de cor trechos de seus livros. Alguém lê a célebre frase que abre Orgulho e Preconceito: “É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de uma esposa.” Outro relembra uma passagem de Persuasão: “Há milhares de descrições poéticas do outono, estação de influência singular e inesgotável sobre as personalidades frágeis e refinadas.” Alguém filosofa: “Por que metade de si mesma era sempre tão mais sensata do que a outra metade e sempre desconfiava de que a outra fosse pior do que na realidade era?” Depois, sentam-se na relva, entre aparelhos de chá e bolos de limão, enquanto ouvem música de um pianoforte.
Vivendo tão afastada no tempo, no período de regência de Jorge IV como Príncipe de Gales, escrevendo romances aparentemente românticos e inocentes, cujo tema é sempre o casamento da protagonista, num ambiente opressor de natureza agrária, em meio às primeiras campanhas para a abolição da escravatura, Jane já advogava pelo direito de educação da mulher. Considerava a falta de sensatez um risco para a vida social, para a escolha de um futuro melhor, mais favorável. Imperava a fatalidade de um bom nascimento ou um bom casamento como única alternativa de decidir o destino de uma moça. As heroínas de Jane são contidas, observadoras, argutas, suaves e decididas. Outras personagens são nervosas, complexas, embaraçadas com os conflitos das relações de classe e gênero. Jane vai narrando, misturando sabedoria, ironia (quase sarcasmo), bondade, delicadeza, inspirando-nos a procurar nosso próprio lugar no mundo, a prezar antes de tudo o dever, a enfrentar nossos problemas com coragem até alcançar um final feliz, sem perder o autocontrole e o bom humor.
Vendo essa gravura do casarão de tijolos aparentes e janelas altas, onde Jane morou com sua mãe e irmã em Hampshire, penso no seu sofrimento. O pai, um professor e pároco anglicano, havia morrido, deixando-as em situação precária. A casa ficava dentro de uma das propriedades de seu irmão Eduardo, pois Jane e a irmã, Cassandra, sua amiga e confidente, jamais se casaram. Jane teve um amor juvenil com Thomas Lefroy, mas se separaram por motivos econômicos. O noivo de Cassandra, o marinheiro Thomas Fowle, morreu de febre amarela no Caribe. Jane dedicou-se totalmente à literatura, escrevendo a princípio sob o pseudônimo “By a Lady”, mas logo sua identidade foi revelada. Sua popularidade se difundiu pelo país. Seu outro irmão, Henry, que morava em Londres, negociava com os editores e a fama crescia.
Há um só pequeno retrato de Jane, que foi desenhado por sua irmã Cassandra. Imagino-a como uma boneca com a pele de porcelana, cachos castanhos em volta do rosto de faces rosadas e maçãs salientes. Alta e seca, num vestido de cor cáqui, com uma cruz de topázio no pescoço e um anel de turquesa no dedo. Vai até a biblioteca, abre uma caderneta de notas onde escreve suas frases impregnadas de críticas aos costumes, nascidas de uma alma nobre e sagaz. Esse afinco com a escrita durou tão pouco. Jane foi acometida por uma doença estranha, um distúrbio nas glândulas adrenais que produzem o cortisol. Vieram a febre, a fadiga, as náuseas, as tonturas, as quedas de pressão. Um romance incompleto ficou sobre a escrivaninha. Tinha apenas quarenta e um anos e estava exausta. O desejo da morte foi o seu último capítulo.
Descobri o porquê de tanto fascínio. Quando leio os romances de Jane Austen, brota em mim o desejo de derrotar os meus inimigos com a arma mais perfeita e poderosa que existe: o amor.