Raquel Naveira
Foi sepultado um verdadeiro príncipe: Philip de Mountbattten (1921-2021), Príncipe da Grécia e da Dinamarca; Consorte Real do Reino Unido de Grã Bretanha, Irlanda do Norte e reinos da Comunidade das Nações; Duque de Edimburgo. Príncipe não somente por seus títulos de nobreza, mas por suas virtudes como lealdade, coragem, entrega a um amor total e generoso.
A realeza segue como algo mágico e simbólico. À rainha couberam o peso e a honra de uma coroa sobre sua cabeça, seu intelecto, sua racionalidade. O cetro da prosperidade; o arminho branco e incorruptível em torno de um manto; o globo encimado por uma cruz em suas mãos. O controle das pulsões e desejos inconscientes de um povo. No jogo de xadrez, sobre mosaicos brancos e pretos, ela reina poderosa. Cada partida é uma época, um movimento de navio, uma decisão de vida. Coberta de joias e insígnias, ungida de óleos santos, ela caminha pelo seu palácio, observada por leões, dragões e unicórnios. O príncipe, cheio de compaixão e força de vassalo, a acompanha pelos corredores do tempo. Há muito a rainha declarara que o esposo fora seu apoio, em todos esses longos anos de reinado. Que ela, sua família, a Inglaterra e muitos outros países tinham para com ele uma dívida que ele nunca reivindicaria e que ninguém jamais saberia aquilatar. Sobre o caixão, uma carta dela escrita à mão, repousava em memória amorosa, oculta entre flores brancas, lírios e ervilhas-de-cheiro.
Philip era filho de André da Grécia e da Dinamarca (1882-1944) e de Alice Battenberg (1885-1988), bisneta da rainha Vitória. A história desse casal foi repleta de aventuras e tragédias. Em 1913, o pai de André foi assassinado e o irmão mais velho, Constantino, sagrou-se rei. A insatisfação com a política de neutralidade da Grécia durante a Primeira Guerra Mundial, levou à sua abdicação e ao exílio. A Grécia foi forçada a devolver territórios para os turcos, com troca de populações. André foi preso, seus ministros e generais executados. Posteriormente, suas tias assassinadas por bolcheviques. Foi banido com a família, deixando a Grécia a bordo do cruzador britânico Calypso. O pequeno Philip acomodado numa caixa de frutas. A Primeira Guerra esmagara várias casas reais europeias. Caíram os impérios russo, alemão e austro-húngaro.
A mãe de Philip, Alice, é personagem de romance. Após uma crise nervosa é internada como esquizofrênica num sanatório na Suíça. Consegue sair e passa a levar vida incógnita na Europa central, cortando contato com maridos e filhos. Volta para Atenas onde trabalha como enfermeira em bairros pobres, organiza abrigos para crianças órfãs e abandonadas, funda uma ordem de caridade, ajuda refugiados judeus. Ao final, já idosa e frágil, sempre vestida de freira, passa a morar no Palácio de Buckinghan, em Londres, onde morre aos 84 anos.
Philip entrou na Marinha Real Britânica aos 18 anos. Serviu durante a Segunda Guerra Mundial, participou de várias batalhas. Esteve presente em Tóquio, quando da rendição do Japão.
Apesar de sua dedicação à Inglaterra, corria em suas veias o antigo sangue grego, a imagem das ilhas espalhadas pelos mares Egeu e Jônico, as areias escuras de Santorini, os monumentos da Acrópole, mais de dois mil anos da civilização ocidental. Da Dinamarca, herdou a ousadia dos vikings, a proximidade com a Suécia e a Alemanha, a resistência interna ao nazismo.
Todos esses acontecimentos que abalaram a Grécia entre as duas grandes guerras nos levam a um livro inesquecível: Zorba, o Grego, de Nikos Kazantzakis (1883-1957). Esse autor atravessou mundos, lugares em que floresceu a cultura greco-cristã, para criar um relato sem paralelo, simples, profundo, picaresco. Zorba é um homem comum, de sessenta e cinco anos, encontrado pelo narrador. Trata-se de um embate filosófico entre a espontaneidade visceral de Zorba e a ética de um jovem intelectual. Zorba é um ser humano integrado ao universo. Quando não podia verbalizar seus sentimentos, dançava à luz da lua, totalmente ajustado: corpo, alma e espírito eram uma coisa só. Para Zorba o mundo era uma visão densa: as estrelas roçavam nele, o mar rebentava em suas têmporas. A natureza, os animais, Deus, as mulheres, nada escapava à sua intuição. O seu olhar era de águia. Chegara ao auge do esforço: o não esforço, o deixar fluir a própria essência.
Penso que Philip, por trás da formalidade britânica exigida pelos banquetes, cerimônias, descerramentos de placas, aberturas do Parlamento, guardava, como numa dança grega, os segredos das guerras, as dúvidas e as certezas, a loucura e a dor dos órfãos exilados, o sonho do desenvolvimento da polis, das cidades que sedimentam Estados. Um Zorba, um lorde, um príncipe.
(A rainha Elizabeth II faleceu no dia 08 de setembro de 1922, no Castelo de Balmoral, na Escócia. Sua morte foi destaque nas principais primeiras páginas do mundo. Tratava-se da mais longeva monarca da história britânica. Com certeza foi ao encontro de seu esposo, o Príncipe Philip, que caminhou, pela primeira vez, na frente dela.)