Raquel Naveira
Dia ensolarado de outono. Calor combinado com frescor. Reflexos dourados iluminando as calçadas cinzentas. Outono é a estação que mais amo. Nesse ciclo eterno de nascimento, formação, maturidade e declínio em que se movem a natureza, os seres humanos, as civilizações, dobrei justamente a esquina do outono. Muitos sonhos foram embora, despedaçados. Guirlandas de flores se romperam. Passei por provações, lutas, perdas, desencantos, como todos neste mundo de aflições, mas sinto ainda com doçura o vento ondulante e a luz clara desta manhã.
Uma manhã assim poderia ter inspirado um quadro de um pintor impressionista, executando seu trabalho ao ar livre, com a tela, o cavalete, a paleta de tinta com as cores do arco-íris, sentado num banquinho, respirando o azul frio do céu. A obra mais importante do principal pintor impressionista, o francês Claude Monet, chamava-se “Efeito do Outono em Argenteuil”. Argenteuil era uma pequena localidade às margens do rio Sena, perto de Paris, que naqueles fins do século XIX ia se abrindo aos viajantes e à indústria, graças às estradas de ferro. Trata-se de uma paisagem moderna, fiel representação das impressões e sensações que os olhos do artista captaram, aqueles olhos que um dia ficariam cegos para a luz e para a arte. Quantas texturas nesse quadro: as nuvens arredondadas como carneiros cobertos de lã; o rio de superfície encrespada; o amarelo e o ocre das folhas de outono mesclados aos tons de verde e rosa das massas de plantas; chaminés e torres à distância espelhadas na água; a faixa azul entre o rio Sena e a cidade desenhando uma ponte entre os arbustos. Tudo tremula, foge, vibra em nossas retinas.
Tão lindo quanto esse quadro só mesmo um haicai de outono. O haicai, poesia fina, sintética, expressão simples de origem japonesa, é pura emoção colhida do voo furtivo das estações que passam. E o melancólico outono é mais uma estação da alma que da natureza, como diria Nietzsche. Guilherme de Almeida, poeta paulista, modernista, que publicou vários haicais no seu livro “Poesia Vária” e morou numa casa da colina, assim traçou um retrato da velhice: “Uma folha morta,/Um galho no céu grisalho./ Fecho a minha porta.” Mário Quintana ficou em dúvida se tinha visto uma borboleta ou uma folha seca desprendida de alguma árvore do outono, solta no ar. E até o revolucionário Paulo Leminski, que escreveu uma biografia de Matsuô Bashô, o mestre criador do haicai, afirmou que duas folhas presas em sua sandália eram o outono querendo andar. Bem ao gosto do haicai, que se refere a um evento particular, a um flagrante instantâneo, o outono está acontecendo agora, nesta rua, na minha vida e no meu pensamento.
Talvez então eu devesse me lembrar do deus Baco ou Dionísio com suas colheitas, cachos de uvas, vinhos, cornucópias de frutos ou ler em voz alta aquela passagem bíblica do profeta Joel incitando o povo de Sião a se regozijar no Senhor, pois ele é o Deus que dá as chuvas de outono conforme a sua justiça.
Vou orar baixinho: _ Sol de Justiça, brilhe sobre mim, transforme meus erros em virtudes, que nada fique igual. Que haja mudanças. Que eu seja despida da folhagem que não é real e me renove em vitória, nesta quadra de outono.