Raquel Naveira
Perseguida, fugi para o deserto. Uma terra árida e desolada passou a ser minha realidade de peregrina. Corre em minhas veias o sangue árabe dos beduínos, o vivo amor da independência, a valentia que beira a temeridade, o amor à poesia e me arrisquei.
Atravessei as areias escaldantes. Caravanas caminharam ao meu lado com cargas de ouro, marfim, especiarias e sal. Meu corpo, sob o manto de lã branca, desafiava as temperaturas amplas que iam do calor ao frio enregelante. Desviei dos escorpiões da maldade, das víboras da inveja e dos chacais da perdição. O medo de morrer de uma picada, de um vírus invisível, era grande, mas não me paralisava. Montada entre as corcovas gordurosas de meu camelo, algo vindo no vento fortalecia minhas mãos fracas e firmava meus joelhos frementes. O camelo, eu confiava, conhecia as rotas onde havia água e me guiava pelas estrelas, pelos cheiros, pela textura das dunas. Súbito, diante de mim, estava o oásis. Um oásis misterioso, todo feito de esperança. Um oásis de paz encravado no meio das montanhas. O lago parecia um lençol esticado e azul. As palmeiras vergavam os galhos pesados de tâmaras, entre canas e juncos. Ah! Como eu precisava desse oásis, desse descanso sagrado, desse repouso, desse momento de me reconciliar com minha origem e sonhar com meu destino. Foram tantas lutas, trevas, ânsias e velórios que já não achava possível um pouco de prazer, de alegria. Não acreditava que no ermo floresciam rosas. E elas exultam. Seria uma miragem? Dirijo-me à fonte que desliza pelas laterais das rochas úmidas, cobertas de mofo e líquens. Bebo sofregamente os goles coletados da névoa. Fiz da fé um oásis no coração.
Na verdade, aprendi desde a infância a percorrer os meus desertos para encontrar esse oásis. Meu mestre foi Malba Tahan, o escritor árabe que viveu em Meca, visitou a Rússia, antes da guerra, ressurgiu na Pérsia, na Índia, em Xangai e no Brasil. Um estranho árabe, “de grandes olhos pestanudos”, como descreveu o poeta Olegário Mariano. Graças ao seu poder de imaginação, ao seu sentimentalismo, sorvi a magia das palavras, dos grandes ensinamentos. Convenci-me de que “quando Allah quer bem a um dos seus servidores, abre para eles as portas da Inspiração.” Senti-me poeta e tuaregue.
Sei que Malba Tahan era apenas o heterônimo do professor de matemática, Júlio César de Melo e Sousa (1895-1974), dono de personalidade original, que estudou a fundo a cultura oriental. Mas gosto de fantasiá-lo como um discípulo de Sherazade, contando mil e uma histórias de monarcas, príncipes, sultões, xeiques, rabinos, dançarinas hindus, odaliscas entre véus, poderosos governantes, humildes servos, todos escravos de amores proibidos. Um universo onde as injustiças e corrupções são punidas, as aparências não iludem e a ética e a sabedoria sempre prevalecem.
Perseguida e cansada, fugi montada em meu camelo para o deserto. Banhei-me nas águas puras de um oásis, folheando antigos volumes das lendas e contos de Malba Tahan.