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Raquel Naveira

O contista, romancista, jornalista brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras, que possui uma vasta produção literária e com quem sempre estou em contato, Ignácio de Loyola Brandão, recebeu nossa crônica “Penteadeira”, que começa assim:

Restaurou a antiga penteadeira, com o espelho de cristal bisotado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua mãe. Muitas vezes a filha a viu frente ao espelho, que lhe parecia baço, coberto de pó. A mãe abria potes de cremes, passava unguentos, o rosto lambuzado de grumos. Que esperava encontrar naquelas geleias? Juventude eterna? Mucos verdes escorriam em sua pele. Havia frascos de perfume, meio abertos, violentos, exalando odores fortes em estranha alquimia. Quando o sol batia na penteadeira, quase na hora do crepúsculo, o torpor morno aquecia as essências e a filha tinha vontade de chorar. A mãe fenecia tristemente. Algo acontecera no passado dela que a tornara tão vulnerável. Não conseguia envelhecer com graça e se satisfazer com o florescimento da filha, ao contrário, corroía-se de ciúme e inveja.

Qual não foi minha surpresa, quando Ignácio publicou a seguinte crônica no Jornal O Estado de São Paulo, do dia 12 de março, que me foi enviado pelo Professor Luiz Gonzaga Bertelli:

O Espelho Biseautê

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Para Paulo Caruso, amigo de uma vida Abri o e-mail de Raquel Naveira, escritora mato-grossense, veio uma poética crônica, ela assim que publica na sua terra, envia aos amigos. Fui atraído pela frase: “Restaurou a antiga penteadeira, com o espelho de cristal bisotado e a banqueta de couro, que ficava no quarto dela, a sua mãe.” Bisotado. Há quanto, quanto tempo não lia, sentia, esta palavra?
Vi dona Maria do Rosario, diante da penteadeira – também se dizia Psychê - com espelho bisotado, às vezes chamado de bisotê.
Depois Fanny Marracini ensinaria que em francês é biseauté. O que significava? Por mais que olhasse para o espelho, não entendia, só via mamãe feliz.
Papai me dizia, “não sei o que é, mas sua mãe quando se senta na penteadeira, fica tão bonita.”
Seria o biseautê? Mas o que era aquilo?
Perguntava, não respondiam. Desconfiei que não soubessem, ou fosse coisa que criança não podia saber. Quantas vezes eu entrava na sala, todos murmuravam “tem criança” e se calavam, custava me explicarem o que era biseautê?
Ou bisotado. Essa coisa que fazia mamãe bonita, feliz quando saía para o cinema, para a reza na matriz, para uma festa? Mal ela saía, eu ia para o quarto e ficava a olhar para o espelho, para meu
rosto, a fim de saber se eu estava mudado, era mais bonito. Não, não estava, era feio. Esquisito, me condenavam.
Um dia percebi que na margem do espelho havia um pequena região diferente. Um mínimo rebaixo. Chanfrado, disse vovô Vital. Quando me ollhei nele me vi bonito. Somente naquela moldura.
Assim descobri o que era biseautê. Beleza. Cada vez que entrava no quarto, me olhava naquele estreito território, onde eu era bonito. Seria o mesmo com mamãe?
Um dia, vi mamãe pentear o cabelo, passar ruge, apanhar uma bola de vidro com quatro letras COTY, passar o perfume, meu pai entrou: “você está mais linda do que nunca!” Seria também aquele perfume?
Um dia, dia mais horrivel, a funcionária que ajudava na faxina, deixou cair o cabo do escovão que dava brilho no assoalho, e o espelho partiu em mil. A dor de mamãe. “Meu espelho, me fazia tão linda”. Ajudei a pegar os cacos, encontrei pedaços do bisotado. E se eu guardasse um pedacinho dele, poderia mudar minha cara, quando estivesse sozinho ? Mudando a cara, as meninas da classe sorririam para mim, a filha do dono do bar me daria um naco do lanche dela, tão apetitoso.
Um dia, a professora leu minha redação, chamava-se composição, e disse: “Nota cem. A melhor redação do ano. Quero que todo mundo leia para saber como se faz.” Tirei meu espelho do bolso, olhei, ouvi:
“você é o menino mais bonito da classe”, dito pela Neuce, irmã da professora Lourdes.
Quantas lembranças a partir de uma palavra: “biseauté”, “bisotê”, “bisotado”. As palavras criam realidades e belezas. Que bom esse diálogo entre escritores.

- Merci, Ignácio. Só para ficar no francês.