Raquel Naveira
O Carteiro e o Poeta, o livro depois transformado em filme, é um romance profundo e emocionante. O escritor e jornalista chileno, Antonio Skármeta (1940-2024), foi designado para escrever uma entrevista com o poeta Pablo Neruda (1904-1973), em Ilha Negra. Lá ele conheceu os personagens da história: Neruda, sua mulher, Matilde Urrutia; o carteiro, Mário Jimenez, que entregava cartas ao poeta e Beatriz. Beatriz, moça bonita, a princípio era distante, imune às investidas do carteiro, mas, aos poucos, foi seduzida por seus versos, pois ele aprendera o poder da linguagem poética e das metáforas com o mestre Neruda. Numa leitura psicanalítica, poetas e carteiros são símbolos de condutores de palavras. Entre Pablo Neruda e o carteiro italiano, instala-se um processo de transferência.
O livro veio a lume quatorze anos depois desse encontro. Depois das mortes do carteiro e do poeta. Um livro que fala de amor, de amizade, de fé no ideal da força da palavra e do encanto da Poesia.
Trecho do romance em que Neruda escreve ao carteiro Mário Jimenez:
... Mas também queria pedir uma coisa, Mário, que só você pode cumprir. Todos os meus outros amigos ou não saberiam o que fazer ou pensariam que sou um velho caduco e ridículo. Quero que você vá com esse gravador passeando pela Ilha Negra e grave todos os sons e ruídos que vá encontrando. Preciso desesperadamente de algo, nem que seja o fantasma de minha casa. A minha saúde não anda nada bem. Sinto falta do mar. Sinto falta dos pássaros. Mande para mim os sons da minha casa. Entre no jardim e faça soar os sinos. Primeiro grava esse repicar suave dos sininhos pequenos quando o vento bate neles, depois puxe o cordão do sino maior cinco, seis vezes. Sinos, meus sinos! Não há nada que soe tão bem quanto a palavra sino se a penduramos num campanário junto ao mar. E depois vá até as pedras e greve a arrebentação das ondas.
Escritora vivendo em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, uma cidade distante do eixo cultural, a minha Ilha Negra, muito antes dos computadores e celulares, tornei-me uma missivista incansável, enviando livros e cartas pelos Correios, por mais de quatro décadas, sempre pensando com ardente paciência: “O carteiro é amigo do poeta.” Assim surgiu o poema “Carteiro”:
Lá vem o carteiro
Vestido de azul e amarelo
Sobre a bicicleta
Impulsionada pelo vento;
Há nele algo do deus Mercúrio,
Imagino de repente
Pequenas asas em sua cabeça,
A túnica sobre o braço,
A bolsa cheia de mensagens.
Vem, carteiro,
Artesão de sonhos,
Força germinativa
De quem porta ideias,
Ordem,
Fortuna.
Vem,
Com tua carga preciosa,
Arfa meu coração
Enquanto espero que me does teus bens
Em forma de palavras,
Letras
E promessas.
Vem, só tu sabes,
Astucioso arauto,
Quão grande é meu espírito de combate,
Eu que escrevo cartas,
Cartas,
Muitas cartas
Que voam
Como borboletas.
Só tu calculas minha audácia
De caminhar por estradas cheias de riscos
E atravessar mares de espumas.
Como tu, escuto atrás das portas,
Ligo antenas
Pelas vias do pensamento
E da comunicação.
Vem, carteiro,
Companheiro,
Despeja sobre meu peito
Um outono de folhas
Prensadas de esperança.
Vem, carteiro,
Elo entre mim e o mundo,
Prisioneira solitária
De uma ilha escura.
Vem, carteiro,
Vem hoje,
Amanhã,
Sempre,
Vem, até o último dia,
Quando exausta,
Consumida de amor,
Conduzirás minha alma até a região dos mortos
Onde conhecerei face a face
Todos os homens e anjos
A quem enviei cartas.