Raquel Naveira
A convite da Academia Luso-Brasileira de Letras do Rio de Janeiro, assistimos a uma palestra da Professora Norma Maria Jacinto da Silva intitulada “Língua Guarani: como estão homem, mulher e criança?” Ela também é autora do livro Cultura Indígena Guarani, que trata da organização de um material didático em Guarani Mbya para alunos do Colégio Estadual Guarani Karaí Kuery Rendá, em Angra dos Reis.
Ouvindo essa experiência, vieram recordações de minha infância em Bela Vista, cidade do Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai, à beira do rio Apa, verde como folha.
Reunidas na cozinha da casa de minha tia Anita, as mulheres dos peões, Ramona, Conceição, Guadalupe, Vicenta, amassavam chipa, enrolavam a massa de polvilho em forma de rosca, enquanto conversavam num idioma estranho, rude, nasalado: o guarani. O guarani é a língua sagrada do tronco tupi, falada no grande vale em que se cruzam as águas do Paraná e as do Paraguai, onde araras azuis voam sobre camalotes. Ainda hoje no Paraguai é a língua do povo e dos descendentes daqueles índios que bebiam mel silvestre e se tatuavam de preto e anil.
Aos poucos, eu ia descobrindo os significados de alguns vocábulos. O guarani é todo formado de palavras compostas. Porã, por exemplo, significa “bonito”. Cunhataí porã, “moça bonita”; Ponta Porã, nome de uma outra cidade de fronteira seca, “ponta bonita”. Aliás, são muitas as localidades da região com nomes guaranis: Camapuã, quer dizer “túmidos seios”, porque o povoado acotovelou-se entre dois morros; Caarapó, “raiz de erva”; Nhu Verá, “campo brilhante”; Tacuru, “cone de terra”, por causa dos enormes formigueiros. No cemitério, Nhandepá, eu observava os panos de linho branco enrolados nas cruzes de madeira tosca: era o curusu-paño, pano de cruz, lembrando o sudário com que Verônica enxugara o rosto do Cristo a caminho do calvário.
As mulheres trabalhavam cantando polcas e guarânias, que falavam de presentes, de lagos, de amor à terra, de romances proibidos, folheando às vezes a revista Ocara Poty Cuê Mi, com o cancioneiro paraguaio, editada em Assunção.
Por algum motivo desconhecido, minha avó não permitia que eu me expressasse em guarani. Repreendia minhas tentativas de pronunciar algumas palavras que iam brotando na fala: jassi (lua), ara bacu (verão) ou cambuchi (pote). Os vocábulos caíam como chuva encantada no meu coração de menina.
A prosa alegre misturava as línguas, numa mescla de sons, de sílabas, de ritmos, de raças. Eu pressentia que a linguagem humana era um mistério e desejava muito descobri-lo.
No meu romanceiro Guerra entre Irmãos: poemas inspirados na Guerra do Paraguai, escrevi um poema intitulado “Comunicação”, comentando que a comunicação na guerra é feita de gritos, brados, ordens imperativas, delações, intrigas, sussurros. Mensagens vêm em bilhetes, cartas seladas, asas de beija-flores, cascas de árvores, folhas de fumo e chegam aos ouvidos que viram conchas e abas de gramofone. Nessa guerra em especial, as línguas se fundiram, amalgamaram-se como saliva no pântano das bocas: a língua portuguesa, galega e galaica, com aroma de carvalho e vinho; a língua espanhola, andaluza e castelhana, de termos árabes, trazida nas caravelas de Colombo e perpetuada nos sonhos de Dom Quixote e a língua guarani, de acento tupi, espalhada pelo Paraguai e por Corrientes, pelas cabanas de pau-a-pique. O certo é que na guerra não há comunicação, somente morte e carnificina.
Se tivesse que escolher uma única palavra em guarani, eu escolheria “Panambi”. Panambi significa “borboleta”. Panamby moroty: borboleta branca; panambi ura: borboleta da noite; panambi verá: borboleta brilhante. Inesquecível a guarânia Panambi Verá: Panambi che raperâme/ reserva rejeroky/nde pepo Kuarahy/ã me tamora e añeñoty. A borboleta de asas douradas, doce e terna, convida a alma ao sossego. Ela passa pelo nosso caminho, bailando, e, ao persegui-la, entramos num bosque cheio de abrolhos. Buscando-a entre espinhos, nossas mãos sangram. Pensando nisso, meus olhos se enchem de lágrimas.
Todas essas lembranças vieram à minha mente durante a palestra da Professora Norma Maria. Como aquele povo está sofrendo no meio de mais uma peste trazida em navios de velas brancas. Que logo venha o consolo na língua materna e ancestral.