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Raquel Naveira

O que me faz chorar? De onde vem essa necessidade de exprimir por meio de lamentos o que está preso na minha alma? De me derramar em desespero esta noite, as lágrimas correndo como ribeiros pelo meu rosto?

Jeremias (650 a.C.- 587 a.C.) lamentou-se tanto diante de Jerusalém conquistada pela Babilônia do rei Nabucodonosor. A queda, o fim de um reino. O povo levado escravo para o cativeiro. Ficou conhecidoRaquel Naveira 1 bedff como profeta chorão, que constatou as suas visões referentes à destruição da cidade serem cumpridas. Por dizer a verdade, foi espancado, aprisionado numa gaiola, teve sua vida constantemente ameaçada, mas se manteve como coluna de ferro em meio à adversidade e oposição. Sofreu desgaste emocional das muitas batalhas. Angustiado, deprimido, acabou jogado num poço lamacento. Um dia, desapareceu misteriosamente no deserto do Egito.

Também tenho reações de pesar quando vejo a destruição de São Paulo: os túneis cheios de mendigos e barracas de lona preta; crianças que pedem pão a cada esquina, desfalecendo nas ruas; malabaristas brincando com fogo nos semáforos; órfãos de pai e mãe, que já não existem, que se perderam nas drogas, que vagam como zumbis pelas vielas sujas e se encostam cansados nas estátuas de bronze; jovens que deixaram a música, a dança e os estudos e vendem seus corpos na sarjeta; mulheres estupradas com violência; homens enforcados nas árvores; velhos que não são mais reverenciados e abarrotam os asilos; as lojas lúgubres do Bom Retiro com seus manequins fantasmagóricos; lixo transbordando pelas calçadas; os palacetes decadentes cobertos de pichações. Por todo lado, sente-se a infestação de morcegos. Há trilhas por onde vêm raposas. Por estas coisas eu ando chorando. Minhas entranhas estão se consumindo. Envelheço na minha carne e meus ossos se quebraram. A cada dia perece a minha força. Meu pranto é de absinto e fel. Dei milhares de vezes a face àqueles que me perseguem. Estou farta de afrontas. Aqui me separei de quem jamais gostaria de ter me separado. Choro e lamento por todos, pela cidade, por meus filhos e por mim mesma. Queixo-me de mim quando esquadrinho meu coração do alto deste viaduto.

Cassiano Ricardo (1895-1974), o poeta paulista, representante do modernismo, escreveu Jeremias Sem-Chorar (assim mesmo, com hífen). Criou um Jeremias integrado no mundo cibernético, eletrônico, astronáutico, planetário da era cósmica, impedido de chorar. Jeremias não chora por sete razões que ele expõe logo no começo do poema, mas se incorpora no desespero lúcido da ciência, da tecnologia. Um Jeremias aterrorizado e o aterrorizado não chora, assim como um náufrago não precisa chorar, pois é chorado por asfixia. Um Jeremias que confessa ter que percorrer o mundo e tudo ver sem chorar. Assistir impassível à guerra nuclear e à degolação de inocentes sem chorar. Sem uma única lágrima. Declara: “Lágrima?/ Coisa íntima e ínfima/ diante do espetáculo.” Conclui que quem não chora, afinal, é apenas um pássaro que não canta.

Talvez haja esperança. Aguardo quieta, gemendo em silêncio, que cesse a fúria do vento. Que parem nas órbitas as meninas dos meus olhos. Que um feixe fino de luz, o farol de um carro talvez, se projete nessas trevas.