Quando passamos pelo Centro Cultural José Octávio Guizzo, antigo prédio da Rua 26 de Agosto, que abriga o Teatro Glauce Rocha, relembramos as trajetórias desses dois ícones da cultura de nossa terra. O campo-grandense José Octávio Guizzo foi pesquisador, contista, músico, estudioso de folclore.
Montou peças de teatro e participou de filmes, como o de Nelson Pereira dos Santos sobre a Memória do Povo Sul-Mato-Grossense, a respeito do episódio da Retirada da Laguna, durante a Guerra do Paraguai. Escreveu ensaios sobre os poetas Lobivar Matos e Manoel de Barros. Faleceu em 1989, aos 51 anos, de enfarte.
Glauce Rocha, também campo-grandense, foi uma mulher fascinante, inteligente, atriz inesquecível de tantos espetáculos de teatro, filmes e novelas de televisão. Militante política em intensa luta em defesa da liberdade de expressão e dos valores democráticos.
Uma vida curta, mas vigorosa. Faleceu exausta, no dia 12 de outubro de 1971, aos 40 anos, também de enfarte, durante as gravações de uma novela ironicamente intitulada “Hospital”.
O livro Glauce Rocha: atriz, mulher, guerreira, de José Octávio Guizzo, editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, não é apenas a narrativa de acontecimentos, de ações cronologicamente dispostas sobre a atriz.
É, a um só tempo, a história da mulher-personagem, cujo talento se concentrou no teatro, sua mais alta vocação e a do escritor que durante 17 anos, sem nenhuma ajuda ou patrocínio, viajou, visitou bibliotecas, entrevistou pessoas, para destrinchar cada pedacinho do mosaico das emoções dessa mulher, recompondo a face inédita de uma existência intensa, de um ser humano forte e frágil. Fragmentos; fotografias; experiências dramáticas como o assassinato do pai; os sucessivos abortos espontâneos, ela, que tanto desejou ser mãe; depoimentos de parentes, colegas, diretores e amigos; flashes do passado; recordações alegres e pungentes; projetos; perdas e ganhos... um livro dinâmico como as sequências de um filme.
Pensar que eu estava lá, no dia 20 de novembro de 1989, quando, depois de ter nos conduzido, jovens interessados por literatura e arte, por duas horas, ao universo de Glauce, através de cenas comentadas de seus filmes, Guizzo teve o mesmo destino de sua biografada, caindo fulminado por um ataque cardíaco. Uma enorme torre atingida por um raio, tombando à nossa frente.
Minutos antes, com mãos fortes, fechara a capa do calhamaço de folhas que escrevera sobre Glauce e dissera: “_ O meu trabalho está terminado.” Tirou os óculos que cobriam os olhos azuis e os pousou sobre os originais. A armação dourada brilhou, as lentes aumentando as letras.
Para Glauce e Guizzo, o teatro do mundo descera subitamente as cortinas, fazendo perceber o caráter ilusório e passageiro do palco terreno. Interpretar e escrever foram formas que utilizaram para libertação do que estava fechado dentro deles. Houve purgação, purificação, poda de árvores, restos de madeira morta, encontro e alívio de almas.
Glauce e Guizzo: juntos para sempre no antigo prédio da 26 de Agosto. Depois de um último olhar, dobro a esquina.