Raquel Naveira
Sou fascinada pelo Egito Antigo, por aquela terra impressionante, cheia de monumentos, que contam a história humana de mais de três mil anos. A história de um povo que mais parece fábula, vivendo entre estátuas indiferentes e múmias escancaradas. O Egito foi alimentado por uma fonte de vida: o rio Nilo. Ali prosperou e desabrochou com os papiros e as flores de lótus. Ali conheceu o esplendor com os primeiros faraós: uma arquitetura digna dos deuses, uma literatura inspirada, um prático artesanato. Interessante a atitude peculiar dos egípcios diante da morte: preparavam- se para ela construindo túmulos, comprando coisas que julgavam indispensáveis como utensílios musicais, perfumarias, como se a outra vida fosse uma simples continuação desta, de um ponto de vista bem material. Olhando o belo busto colorido de pedra calcária, representando a rainha Nefertiti, esposa de Amenófis IV, uma preciosa antiguidade, nasceu este poema:
Meu irmão, meu amado,
Brilho de amor por você,
Mesmo sepultada
Numa caixa dourada
Dentro de outra,
Dentro de outra;
Quando o sol perambula pelo vale,
Levanto sonâmbula,
Peço aos servos que toquem harpa,
Tragam joias,
Copos de faiança
E me preparo como noiva,
À espera da eterna aliança.
Meu irmão, meu amado,
És abutre,
Sou serpente,
Unamos nossos reinos,
Nossos sexos,
Oriente e Ocidente;
Sou flor de Lótus
Perdida no rio,
Sofro solidão de múmia na cripta,
Mas, se vieres pelos subterrâneos,
Afasto esse chacal que me vigia,
Os séculos de pó
E veremos ainda a luz do dia.
A religião egípcia era fatalista: os deuses dominavam a natureza e as almas. Os animais eram venerados: o leão, o crocodilo, os carneiros e os gatos. Os deuses misturavam formas humanas e animalescas como Hátor, deusa do amor e do parto, que tinha chifres de vaca; todos eram regidos por Rá, o Sol. Osíris era o deus da morte:
Osíris: mortal bumerangue,
Deus de sangue
Devorando almas.
O barco desce o Nilo,
Aves voam entre caniços,
Lá vai o corpo da princesa,
Envolto em sal, resina, linho,
Casulo seco
Sem perspectiva de borboleta.
Incenso,
Perfume de lótus,
Pomada adocicada
Derretida na longa caminhada
Rumo ao sol sepulto no ocidente.
Vai Osíris,
Preciosa carga,
Nesse deserto já não cabe
Nem uma ilusão amarga,
Vai, busca
O derradeiro Oásis.
O Egito traz-me à memória a leitura de um livro marcante: José no Egito, de Thomas Mann. O livro conta a história de José, filho de Jacó e Raquel, que, invejado pelos irmãos, foi vendido por estes a uns mercadores que o revenderam no Egito a Putifar, general do faraó. A mulher de Putifar apaixonou-se por José e tentou seduzi-lo.
Repelida, acusou-o de querer induzi-la ao adultério. Encarcerado, José ganhou na prisão fama de intérprete de sonhos. Chamado pelo faraó interpretou o sonho das sete vacas gordas e das sete vacas magras, predizendo para o Egito sete anos de prosperidade e sete anos de fome, aconselhando o soberano a tomar precauções contra a calamidade. Foi assim nomeado vice-rei. Sem alimentos, os irmãos de José transferiram-se para o Egito, onde todos se reconciliaram. Notamos, logo no começo do romance, quando José faz como escravo “a viagem para baixo”, o conflito que instala em sua alma: ele caminha para o Egito fascinante, cheio de baixezas morais. A ousadia de sua juventude sente-se feliz pela aventura, mas o espírito se arma para enfrentar os perigos. Hoje, qual novo José, peço a Deus que me livre da inveja fratricida, do Mal, da escravidão, das pestes, da sedução dos ídolos de pele de jacaré e olhos de jade.
À beira do Egito, sou esfinge, estranha e insondável, guardando do alto a imensidão do deserto.