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Coloco na travessa as batatas quentes, lisas, fumegantes. Preparei um prato especial nesta noite fria de junho.

comedores de batatas 1 ef25dA batata é uma planta perene, selvagem, de flores e frutos e, no subterrâneo do solo, guarda a surpresa dos tubérculos comestíveis, gemas amarelas, ricas em amido e carboidrato. Sua origem remonta há milhares de anos, as ramas espalhadas pela Cordilheira dos Andes, à beira do Lago Titicaca, cultivada pelos antigos incas. Os invasores espanhóis dizimaram os incas e levaram para a Europa esse tesouro. Alimento fundamental, o preferido em muitas áreas urbanas, capaz de trazer solução para a fome do mundo.

Que quadro impressionante é o “Comedores de Batatas”, de Van Gogh! Usando uma paleta de cores escuras como preto, marrom e ocre, retratou uma cena do cotidiano camponês medieval, com sua miséria, escassez, falta de recursos. A mesa rústica, as batatas numa vasilha de cerâmica ao centro, sob a chama trêmula de um lampião que ilumina as faces de criaturas rudes, sôfregas, interrogativas. As mãos grosseiras da mulher partindo os pedaços. Escreveu o artista em carta ao seu irmão Théo que se aplicara conscientemente em dar a ideia de que essas pessoas que comem as batatas com as mãos, também lavraram a terra. Que o trabalho manual, árduo, trouxe-lhes a nutrição honesta. E assim, entre goles de café nas canecas e bocados de massa, a luta se desenvolve, sofrida e fraterna.

Essas figuras preocupadas com a pouca comida são a representação da fome. Nos lugares com fome de ética, o povo padece fome. Tudo passa, menos a fome do homem, sempre renovada. O pão é a necessidade de cada dia. O homem é escravo da sua enorme fome. E há tantas fomes: fome na alma, fome por amor, fome de conhecimento, fome de justiça, fome de imortalidade. Fome: puro instinto. Com fome, o homem é surdo e bruto. Escreveu o poeta russo Maiakóvski que gente era pra brilhar aqui e na eternidade, brilhar como farol. E continuou: “Gente é pra brilhar não pra morrer de fome.” Essa frase foi citada por Caetano Veloso em sua canção “Gente”. Os poetas nos levam a refletir sobre a fome como desgraça social, fome como vazio, fome que tira a dignidade. A banda Titãs gritou alto e bom som que gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão, arte, vida de qualidade. A gente quer prazer, alívio da dor, felicidade, ser inteiro, íntegro, ter nossos desejos e vontades supridos em vários níveis, até o espiritual, até o caminho das estrelas. Sentimo-nos sensíveis às mais diversas causas, choramos, empunhamos bandeiras, enquanto milhares de seres humanos morrem de fome ao nosso lado e não vertemos sequer uma lágrima por eles.

Quando Josué entrou na Terra Prometida, cessou o maná, o alimento branco como pluma, que caía do céu na travessia do deserto. Eles então comeram do trigo, das novidades dos frutos das lavouras de Canaã, onde jorravam leite e mel. Longe dali, num continente desconhecido e vermelho, pulsava na carnadura do planeta o segredo das batatas.

“_Tenho fome e sede de você, da sua presença, estava com saudade...”, murmuro em voz baixa, a terrina nas mãos. “_Divido com você minha comida, as generosas batatas. Para você, eu cozinho.”