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Raquel Naveira+

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Que visão trágica o escritor russo Lev Tolstói (1828-1910) tem do casamento. Esse é o fio condutor de seu romance A Sonata a Kreutzer, em muitos pontos um espelho da relação de casal entre ele e sua esposa, Sofia Berhrs.

Foi um casamento intenso, que começou com uma grande paixão e colaboração intelectual, pois ela foi copista, editora e administradora das obras do marido. Ele revelou a ela, bem mais jovem do que ele, antes de casar, suas aventuras sexuais passadas. Que se entregara a prazeres mundanos como amantes e jogos. Confessou até a existência de filhos ilegítimos, mas ela tudo aceitou. Tiveram treze filhos, dos quais oito sobreviveram à infância. O casamento foi se deteriorando à medida que Tolstói, lá pelos cinquenta anos, passou por uma crise espiritual. Invadido por um ideal moral elevado, renunciou à riqueza, passou a pregar a castidade, o desapego material, ideias que entraram em choque com a sua vida familiar. Sofia sentiu-se incompreendida, traída. Houve muitas discussões entre eles e, pelo menos uma vez, ela tentou o suicídio.

O homem sensual e o profeta se debatiam dentro de Tolstói. Aproximava-se cada vez mais de um cristianismo ético, que defendia o pacifismo (influenciou as ações de Gandhi na Índia), a simplicidade, o vegetarianismo, a luta por justiça social.

Aos oitenta e dois anos, numa noite gelada, Tolstói foge de casa. Quer viver livre como um camponês anônimo. Ficar longe de qualquer cobrança. Esconde-se, tossindo e doente, numa estação ferroviária. Sofia chega, desesperada, sacoleja o corpo do marido, o vagão que range sobre os trilhos. Ele estava morto.

Voltemos a A Sonata a Kreutzer. Que romance feroz. Combina crítica à sociedade, reflexões sobre o casamento e a fidelidade. Narra em primeira pessoa a história de um viajante de trem que escuta o relato de um homem perturbado, Pozdníshev. Durante a jornada, o homem conta aos passageiros que casou por amor, mas logo percebeu que sua interação com a esposa era dominada pela luxúria e pelo ciúme. Sentia nojo e desprezo. O casamento se transformou numa convivência amarga, cheia de desconfiança, insatisfação e ressentimentos.

Certa vez, sua esposa passou a tocar violino junto com um jovem músico. Executaram a “Sonata a Kreutzer”, de Beethoven. Ele percebeu a eletricidade erótica entre os dois. Cordas, centelhas, faíscas. Força irracional. Instalou-se entre os artistas um clima de sedução, povoado de sementes de desastre. Possuído pela raiva, Pozdníshev mata a mulher, mata sua própria carne, liberta-se dos grilhões do desejo pela violência. Um erro fatal. O resto da vida atormentado pela culpa. O homem só vence o instinto pela compreensão de sua frágil e apodrecida natureza. A chave é a compaixão. O sexo é gerador de destruição quando separado do amor espiritual.

A leitura desse conflito conjugal é estranha, incomodativa, como neste trecho: “Isto começou desde os primeiros dias e prosseguiu o tempo todo, fortalecendo-se e encarniçando-se cada vez mais. Desde as primeiras semanas, senti no fundo da alma que eu fora apanhado, que saíra algo diverso do que eu esperava, que o matrimônio não só não constituía uma felicidade, como era algo muito penoso, mas, a exemplo dos demais, não queria confessá-lo a mim mesmo...”

O livro polêmico, publicado em 1889, foi censurado na Rússia. Sofia, a esposa de Tolstói, ficou abalada, coberta de vergonha com as comparações que o público fazia entre a ficção e o real. (Ai daquele que tentando matar o pecado, mata o amor!).

Depois dessa experiência cáustica, tive que me lavar lendo a concepção de casamento do místico libanês-americano, Kahlil Gibran (1883-1931) em seu livro O Profeta. Quanta sabedoria e sensibilidade. O casamento como união livre entre duas almas inteiras, que permanecem independentes e ligadas. Companheirismo, respeito, ajuda mútua. Alguns de seus conselhos: “Permanecei juntos, mas não demasiado próximos: pois os pilares do templo erguem-se separados, o carvalho e o cipreste não crescem à sombra um do outro.” E ainda: “Cantai e dançai juntos, e alegrai-vos, mas deixai cada um de vós estar sozinho, assim como as cordas de um alaúde estão sozinhas, embora vibrem com a mesma música.”

Sobre o casamento, veio-me à mente a palavra “comunhão”. Escrevi este poema:

Amo teu corpo,

Tua pele,

Teus músculos

Feitos de nervos,

Sangue,

Espasmos.

 

Amo tua alma,

Sinto-a na tua voz,

Nas tuas palavras

Que bebo,

Como se fossem mel,

No teu sopro quente,

Vapor em meu pescoço.

 

Amo tua alma

Como se fosse revestida de pele

E de músculos.

 

Amo teu corpo,

Como se fosse um sopro,

Uma voz.

 

Amo tua alma

Como se ela tivesse nervos

E se retesasse.

 

Amo teu corpo

Como se ele fosse um vapor etéreo,

Intocável.

 

Amo teu corpo

E tua alma

Com tal intensidade

Que te reconheço

Em qualquer espasmo,

Mel em meu pescoço.

 

Amo tua alma

E teu corpo

Com tal vivacidade

Que não desejo posse,

Mas suave entrega.

 

Teu corpo:

Eu o penso;

Tua alma:

Eu a vejo,

És sujeito

E objeto

Do meu amor.

 

Eu te comungo.

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