Raquel Naveira
Foi depois da chuva, entre o pé de dama-da-noite e as folhas da amoreira, que ele apareceu: o caramujo. Que estranho esse molusco! O corpo de lesma e lodo, os pequeninos chifres como antenas captando a direção do vento, a concha espiralada nas costas. Tenho a impressão que me observa, mas é cego e por isso mesmo talvez enxergue minha alma. Talvez saiba que sou feita de mucos, como ele. Desloca-se, lento e fresco. Desliza a pele macia pelas lajotas do jardim, soltando um visgo. Pesa-lhe o esqueleto que carrega, como um fardo de nácar.
Esse rastro de brilho cintilante são marcas do passado, de tudo que deixamos para trás, pelo caminho: os sonhos; as sementes do sexo; as lágrimas líquidas e quentes, do material das pérolas. A concha é o lugar para nos escondermos dentro de nós mesmos, quando sentirmos o perigo do predador. Encolheremos tanto nesse movimento de viagem interior que voltaremos ao útero, casa de veludo em que estávamos protegidos do medo, do frio e do calor.
Esse animal totem, não sociável e tímido, tornou-se o símbolo do poeta Manoel de Barros. Ele explicou, em um de seus poemas, que “o próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos caramujos”, pois “eles carregam com paciência o início do mundo”. Acrescentou: “Há um comportamento de eternidade nos caramujos.” “No geral, os caramujos têm uma voz desconformada por dentro.” Pura voz da intuição, do farejar a umidade do ar, é o que penso.
Quando o cineasta douradense, Joel Pizzini, resolveu filmar um curta-metragem cheio de signos verbais e visuais sobre a arte poética de Manoel de Barros, escolheu o título “Caramujo-flor”. Alexandre Azevedo escreveu, inspirado na infância do poeta, o livro “O menino que virou caramujo”, mergulhando num universo de insetos, pássaros, flores e árvores, numa trama de insignificâncias que deram origem à cosmovisão do poeta. E o artista plástico Ique, criador da estátua de Manoel de Barros, atração turística colocada embaixo de uma figueira centenária na principal avenida da cidade de Campo Grande, modelou em bronze um caramujo que passeia pela borda do sofá da sala do poeta.
Enquanto isso, o caramujo, em ondas e flutuações, desfila pelas lajotas, como um cordão umbilical enrolado em sangue e lama, logo em seguida ao parto. Assim como o poeta, ele trabalha vagaroso, meditativo, confiando apenas em completar sua obra, seu destino. Tão frágil, vulnerável, isolado na terra, perseverante nessa trilha. Chegará, no tempo exato, a algum riacho de águas doces e profundas. A lua ilumina a cola em prateada teofania.
Ah! Esqueci de contar: era lua cheia, quando o caramujo apareceu.