Raquel Naveira
Ganhei um presente deslumbrante: uma luminária azul em forma de globo terrestre com todos os pontos das constelações marcados. No hemisfério celestial norte, logo abaixo da Ursa Maior, está a Cabeleira de Berenice.
Duas mulheres se destacam na História com o nome de Berenice, palavra que significa “portadora da vitória”. A primeira foi uma rainha do Egito, por volta do ano 243 a.C., que assumiu o trono ainda adolescente. Notável administradora, cavalgava como uma amazona, participava de batalhas, gostava de corridas de biga. Foi assassinada pelo próprio filho.
Reza a lenda que Berenice prometeu seus longos cabelos cheios de força e vitalidade, verdadeiros raios de sol em volta de sua cabeça, à deusa Afrodite, se seu marido Ptolomeu retornasse são e salvo da guerra. A deusa atendeu o pedido e Berenice cortou os cabelos. Tonsou as lindas madeixas em sinal de renúncia e sacrifício e as depositou no altar. No dia seguinte, porém, a cabeleira havia sumido. O astrônomo da corte afirmou que Afrodite, encantada com a oferta, levou a cabeleira para o céu. O asterismo foi popularizado como “Cabeleira de Berenice”, “Coma Berenices”.
A segunda Berenice foi uma figura bíblica, uma romana sedutora que teve muitos amores. Casou-se com seu tio, Herodes, rei de Calquis; cometeu incesto com seu irmão, Herodes Agripa II e foi amante dos imperadores Vespasiano e Tito. Imagino que era muito bela, que se vestia com a elegância de uma túnica de linho branco debruada de ouro, joias preciosas, faixa no peito, estola de pele. Um fio de pérolas entremeado entre os cabelos.
Chegou junto com o rei Agripa II a Cesareia, onde estava acontecendo o julgamento de Paulo. Foram saudar Festo, substituto de Félix, o procurador da Judeia. Festo lhes pediu que assistissem ao interrogatório de Paulo, junto ao tribunal. Festo estava perplexo. Não entendia o ódio dos sacerdotes e anciãos judeus que pediam sentença contra ele. Que crime cometera afinal? São questões acerca das superstições deles e de um tal defunto que Paulo insiste em dizer que está vivo.
Berenice interessou-se, meneou os cabelos:
_ Passar por todo esse sofrimento para afirmar que um morto está vivo?
_ Sim, respondeu Festo. Não é costume dos romanos entregar algum homem à morte, sem que o acusado tenha presente os seus acusadores e possa defender-se no processo, perante a lei. Nenhuma coisa apontaram daquelas que eu pensava: nem roubo, nem assassinato, nem arruaça, nem nada. Eles simplesmente o perseguem. O que ele diz gera confusão, hostilidades e debates. Ele diz que é sua missão, que o morto é luz para o mundo. Pediu para ser enviado a Roma para falar com o Imperador Augusto em pessoa. Mandarei prendê-lo numa cela. Torturá-lo para que desista dessas teimosias, dessas loucuras. Depois de algum tempo, se não houver mais apelações e defesas, determinarei que seja enviado a Roma.
Voltando-se para o rei Agripa, Festo perguntou:
_ Diante desse auditório, qual sua opinião sobre o réu? O que escrevo na notificação do envio desse cidadão a Roma? Parece contra a razão um preso que não cometeu crime. Que só quer dar a notícia de que o morto vive.
Não houve decisão. O rei Agripa e Berenice deixaram a sala do júri, diante das autoridades que se entreolhavam, cheios de dúvidas quanto ao motim dado por Paulo.
Acendo a luminária azul. Penso que um anjo vela sobre cada estrela. Que as estrelas preservam das ciladas do caminho, que cada uma é um desejo inexprimível de ser livre. De ficar firme como uma estaca na eternidade, onde há ausência e solução dos conflitos, das lutas incessantes contra as injustiças, a sede de uma vida tão intensa que triunfará sobre a morte.