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Raquel Naveira

A cabeça é a parte mais importante do corpo, a sede da vida e do pensamento dentro de nós. O líder de um grupo ou movimento é o seu “cabeça”.

O artista visual e escritor paulistano Valdir Rocha (1951) desenha e faz esculturas de cabeças. Essa é sua inquietação, sua mania. Giz de cera, lápis dermatográficos, ácidos de várias tonalidades, vão surgindo as cabeças impactantes de olhos rasgados ou acesos. Bocas cerradas, com lábios finos e cínicos. Cabeças ovaladas, atentas, que tudo escutam. É a caça sem fim do humano, do racional, do louco, do confuso no cérebro e na mente.

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No seu livro de desenhos intitulado Cegos, Surdos, Mudos e Anósmicos, Valdir exalta as sensações do ver, do falar, do tocar, do cheirar. Afirma que “todo personagem pintado é desprovido de percepção”. Jogo a ser jogado. Os matizes são cinzentos, esbranquiçados, alaranjados, terrosos, verdolengos e violetas. Máscaras pesadas e tristes. Já os desenhos do outro caderno, o Errantes, remetem a erros, errâncias, errantes, à nossa própria condição de peregrinos sobre a Terra. As cores são mais fortes: vermelho, amarelo e azul-noite. Seres com orelhas grandes e pontiagudas, com pupilas que flamejam. Esgares e sorrisos falsos. Alguns dão a impressão de hominídeos extraterrestres, aprisionados em invólucros de múmia ou casulo. De casulos tão compressos poderia, de repente, quem sabe, surgir alguma borboleta.

Cabeças rolaram durante a Revolução Francesa (1789-1799). Foi criada a guilhotina, máquina para executar pessoas, decapitá-las com afiadíssima lâmina em forma de trapézio. O médico que a inventou, Dr. Guillotin (1738-1814), inspirado em antigas gravuras medievais, desejava uma morte rápida, sem dor para os condenados por crimes contra o Estado. Numa época de acusações e vigilância, a cada minuto alguém subia ao cadafalso. Robespierre (1758-1794), líder dos jacobinos, protagonizou, perseguiu e matou milhares de pessoas. A guilhotina transformou-se um símbolo de repressão. Na última fase da Revolução, Robespierre foi guilhotinado e também um homem chamado Guillotin, confundido com o verdadeiro Dr. Guillotin, que morreu de causas naturais.

Sanson (1739-1806) foi o principal carrasco, com mais de três mil mortes nas costas. Segurou pelos cabelos as cabeças de Luís XVI (1793), Maria Antonieta (1793), Madame Du Barry (1793), Danton (1794) e do próprio Robespierre. A máquina funcionou por mais de 185 anos, até 1939. Finalmente o presidente François Miterrand (1916-1996) aboliu a pena de morte na França, em 1981.

São muitas as lendas de fantasmas que caminham por castelos e encruzilhadas, carregando a cabeça entre as mãos como o mártir cristão São Denis (...250 d. C.) e a rainha da Escócia, Mary Stuart (1542-1587), acusada de alta traição por sua prima Elizabeth I. O carrasco não consegue tirar a vida da vítima, que age e domina pelo espírito. Subsiste ao poder que mata e degola.

Valdir Rocha (1951) criou uma enorme fundição em bronze, a Jano, que está no parque Ceret, no Jardim Anália Franco, em São Paulo. Duas cabeças grudadas, como as faces de uma moeda: uma vê para frente, outra, para trás, passado e futuro. Os problemas que enfrentamos são tão grandes que têm várias cabeças. E as coisas capotam de cabeça para baixo, em ruína.

Enquanto observo as surreais cabeças de Valdir Rocha, ouço ao longe as últimas palavras do Rei Luís XVI: “- Franceses, morro inocente, perdoo meus inimigos, desejo que minha morte seja...” Voz abafada por tambores. Em segundos, a cabeça rolou sobre um monte ensanguentado de feno.