Cabia na pasta de couro preto e cheiroso o grande Atlas Geográfico. Era um álbum colorido, com um conjunto de mapas, espaços da Terra numa superfície plana, ilustrado por desenhos de rios, montanhas, cordilheiras, países, cidades, continentes, meridianos, paralelos e trópicos. O mundo todo, completo, pronto para ser explorado. Folheava o papel sedoso, desejando orientação para futuras viagens.
Atlas... o porquê desse nome tem origem na mitologia grega. Atlas foi um titã, um gigante, uma força caótica que pretendia alcançar o poder supremo. Atacou o monte Olimpo, combatendo Zeus, que comandava os espíritos da ordem do cosmos. Zeus triunfou e castigou Atlas, condenando-o a sustentar o mundo nos ombros para sempre, por toda a eternidade. Atlas tornou-se assim um sofredor, portador de um peso desmedido: aflições, guerras, fronteiras, desigualdades, prazer e cobiça. Por algum tempo guardou as águas distantes, além do mar Mediterrâneo, dando seu nome ao Oceano Atlântico, por onde com sua boca soprou os ventos que empurraram as caravelas dos descobrimentos.
Toda gente é como Atlas. Carregamos sobre a vértebra da coluna cervical um globo: a enorme cabeça, que abriga nossa mente. Movemos a bola de um lado para outro. Apuramos os sentidos. Giram nossas emoções, vaidades, num mundo subjetivo captado pelas lentes dos olhos e devorado para manter nossa carne.
E o que é o mundo afinal? O firmamento? O planeta? A realidade concreta e tangível? A sociedade conectada? Os aglomerados de estrelas? A corrupção? A insegurança? Pessoas morrendo, ficando doentes, contaminadas por vírus, pandemias, assaltadas na esquina?
Ah! Não sou deste mundo. Recuso-me a me moldar por esse padrão. A aceitar a louca sabedoria mundana. A perder minha alma para ganhar o mundo. A ter amizade com o mundo. A absorver pelos poros essa treva.
Tive neste confinamento uma visão. Foi numa noite de insônia, de névoa, de cortinas cerradas. Vi o mundo como uma cidade imensa, de palácios, muralhas, jardins aéreos, luzindo num azul betume. Começou então uma estranha cerimônia: na base da escadaria, mercadores, deportados, religiosos, militares, políticos subiam por uma torre, arrogantes, desafiando os astros. De repente, todo o sistema desmoronou: povos, multidões, nações e línguas em completa desarmonia. O esplendor da cidade tornou-se vício, o triunfo e a matéria se desintegraram em ruínas. Foi numa noite de insônia. Eu, filha de Atlas, uma plêiade perdida de minhas irmãs, consegui fugir, vaguei pela esfera celestial até sumir no círculo ártico. Os meus cabelos soltos viraram a cauda de um cometa.
Pensar que cabiam naquela pasta de couro preto e cheiroso, o Atlas Universal, a fundação do mundo com tudo o que nele existe e a angústia de seu fim entre fogos e vapores.