Pés descalços, um escorregão pelo piso frio da cozinha e resultado: o fêmur, osso longo da coxa que se articula com o quadril, pendido como uma haste. Era o chamado “tombo da própria altura”. Cirurgia. Dias no hospital.
Tudo muda num momento assim, em que compreendemos nossa profunda miséria, a morte batendo à porta. Vontade de arrancar aquela flecha que me ferira. Sentia-me como um cântaro que precisava ser consertado ou quebrado para sempre. Minha alma e meu corpo dobraram-se na dor e no esgotamento. Mas é incrível como até dos espinhos e tribulações, colhemos depois as rosas, a paz, a tranquilidade, a união familiar que sonhamos. O bem emerge do mal, uma nova chama reacende em nosso espírito.
Fui assistida por uma enfermeira especial, delicada, um anjo que o tempo todo demonstrou firmeza em seus cuidados, tomou decisões imediatas como quando colocou sob o colchão uma manta macia, semelhante a uma casca de ovo, para meu alívio. Houve uma conexão entre nós, nos movimentos, nas palavras, no apoio de seus braços, no seu sorriso. Gratidão e confiança emanavam de mim.
Bela e difícil a profissão de enfermeira, pensei. Lembrei-me de Anna Néri, pioneira da enfermagem no Brasil. Anna, já viúva, tinha dois filhos que eram oficiais do Exército e, ao irromper a Guerra do Paraguai, em 1864, seguiram ambos para o campo de batalha. Anna requereu que lhe fosse facultado acompanhar os filhos durante os combates, prestando serviços voluntários. Deferido o pedido, partiu de Salvador, na qualidade de enfermeira. Trabalhou cinco anos ininterruptos nos hospitais militares de Salto, Corrientes, Humaitá e Assunção. Viu morrer na luta um de seus filhos. Terminada a guerra, regressou à sua cidade natal, onde lhe foram prestadas homenagens. Anna Néri encarnou o ideal de atenuar o sofrimento dos doentes, a coragem, o desvelo, o amor ao próximo, o conhecimento profundo das técnicas com instrumentos e o valor das ervas que traziam a cura dos males.
Pergunto à enfermeira se ela já ouvira falar sobre o papel de Anna Néri na Guerra do Paraguai. Ela ouve meu relato e depois faz com o dedo sobre a boca o sinal de silêncio. Esse gesto foi eternizado numa imagem, uma figura clássica, que se tornou ícone da enfermagem, em quadros espalhados por hospitais de todo o mundo. Era uma campanha que buscava pelo silêncio nas instituições de saúde, com o intuito de fornecer uma melhor recuperação aos pacientes, num ambiente de calma, respeito e repouso. É mesmo em silêncio que os verdadeiros guerreiros travam as mais duras batalhas. No escuro silêncio da noite avolumam-se os receios, os temores, mas quem tem fé, nada teme, resiste. Quando a luz da manhã entra por uma fresta da janela é o sinal da vitória e da esperança.
Cercada de carinho, restabeleço-me lentamente. Quero louvar, agradecer e anunciar sempre mais a doutrina que me sustenta. Por enquanto, procuro esquecer o trauma físico e psicológico passado. Após receber alta, animada, aproximo-me da porta do carro, na cadeira de rodas conduzida pela enfermeira de tão alto padrão para mim. Então, surpreendentemente, ela me diz: “_ Deve ser tão divertido morar com a senhora.” “_Como assim?” Pergunto eu. “_É que a senhora sabe contar histórias.” Passo as mãos sobre a perna inchada, os olhos cheios de lágrimas: “_ Um dia, contarei essa história, Miriam, prometo.” (O nome dela era Miriam).